Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que há pelo menos 400 mil processos judiciais envolvendo a assistência à saúde, tanto pública quanto privada. Balanço de 2011, do mesmo CNJ, apontava 250 mil ações. O avanço de 60% indica que a judicialização da saúde continua sua escalada.

Nunca é demais lembrar que, num regime democrático, é direito do cidadão recorrer à Justiça para defender seus interesses. Entretanto, mesmo considerando que haja fundamento legal para muitas dessas ações, o volume crescente de processos é sintoma de anormalidade e não o contrário.

Instalou-se na saúde a cultura da litigância. Infelizmente, a ação, que deveria ser o último recurso para o paciente obter um tratamento, para muitos é o ponto de partida. São comuns situações em que o paciente já sai do consultório médico com a receita e o cartão do advogado que vai “aviá-la” na justiça.

Assim, proliferam agora os chamados “advogados de porta de hospital”. Floresce também uma “indústria de liminares” que, curiosamente, entra em ação às sextas-feiras, à tarde, quando começam os plantões no judiciário.

Vários casos, como a imprensa mostrou ao denunciar a Máfia das Próteses, estão associados a interesses sinistros: uma minoria de médicos antiéticos, mancomunados com distribuidores de produtos, agem para ludibriar a Justiça. E os pacientes não raro são submetidos a cirurgias desnecessárias ou induzidos a utilizar remédios que sequer foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Os valores movimentados pelos processos despertam poderosos interesses comerciais. Apenas entre 2012 e 2014, o governo federal gastou R$ 1,76 bilhão com medicamentos para atender decisões da justiça. Causa preocupação a tentativa de forçar, através da justiça, a compra de produtos que não estão na lista de medicamentos distribuídos pelo SUS nem no rol de coberturas obrigatórias dos planos de saúde.

De fato, novos medicamentos e tecnologias precisam ser incorporados, mas com base em critérios rigorosos. Para garantir a segurança dos pacientes, é preciso que haja evidência da eficácia desses insumos. E há que considerar a viabilidade da incorporação, o impacto econômico sobre o orçamento público da saúde (bancado pelo contribuinte) e sobre os custos dos planos (pagos pelo conjunto de beneficiários).

Países como Inglaterra, Alemanha, França e Canadá criaram metodologias para estabelecer aquilo que é justo o Estado fornecer, partindo do princípio de que não é viável dar acesso irrestrito a tudo e a todos. No Brasil, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) cumpre esse papel, mas nem sempre é levada em conta nas sentenças.

Com o objetivo de conter a judicialização, o CNJ publicou 68 enunciados interpretativos, para orientar magistrados em questões da saúde. Num deles, recomenda-se, por exemplo, que o médico seja chamado a dar esclarecimentos quando há prescrição de medicamento, produto ou procedimentos “que não constem em lista ou protocolo do SUS”.

Os Tribunais de Justiça, por sua vez, com a constituição de Núcleos de Apoio Técnico e Mediação (NAT) em diversos Estados, têm procurado suprir a falta de informações técnicas para embasar as decisões dos juízes e também estimular a conciliação.

Esses movimentos corroboram a ideia de que a judicialização é um fenômeno a ser superado. Em seu lugar, a sociedade deve estabelecer as bases para o aperfeiçoamento institucional que garanta o direito do cidadão à saúde e assegure, ao mesmo tempo, a sustentabilidade da assistência à saúde, pública e suplementar.

PEDRO RAMOS é diretor da Abramge – Associação Brasileira de Medicina de Grupo

Fonte: Folha de S.Paulo