Artigo escrito por Cristina Martins*, presidente da Solus Soluções Estéreis, empresa apoiadora do Seminário Femipa pelo segundo ano consevutivo.

Conflito de interesse é um dos assuntos que geram muita discussão e emoção entre diferentes profissionais da área de saúde. A questão pode, continuamente, ocorrer em vários contextos e formatos. Embora possa parecer simples, o conflito de interesse é extremamente complexo, com interações variadas. O assunto não é suscetível a definições fáceis. Cada situação pode necessitar de análise ou tratamento diferente. Porém, qualquer decisão ética não deve ser obscurecida pelos quatro “Fs”: familiaridade, fraternidade (amizade), favores e finanças (1). O primeiro princípio fundamental da ética chama à “honestidade, à integridade e à justiça”.

Na definição usual, conflito de interesse refere-se à situação em que há competição entre compromissos pessoais e profissionais; ou interesses pessoais ou financeiros que podem dificultar a execução de deveres, de forma justa, de um profissional. Em geral, o conflito de interesse é financeiro em natureza. Nenhum conflito de interesse não financeiro é mais sério do que aquele financeiro. Um indivíduo com interesse financeiro tem, certamente, seu julgamento afetado. É o caso de um profissional que aceita compensação de uma empresa específica.

Os profissionais têm habilidades e conhecimentos especiais que os qualificam a auxiliar pessoas leigas em assuntos importantes, nos quais não são capazes de resolver sozinhos. Se, por razões especiais, um profissional coloca indivíduos que confiam nele, ou na profissão, em atos que, sem o conhecimento deles, apelam em contrário aos seus interesses, isso é conflito de interesse. Quando há conflito de interesse, a análise do profissional ao produto ou serviço será, provavelmente, influenciada pelos arranjos financeiros. Nesse caso, a avaliação profissional será menos do que completamente objetiva. E a confiança será colocada em risco.

O conflito de interesse é uma questão ética. Comportamentos não éticos requerem o entendimento do que, realmente, é bom ou mal, certo ou errado. Comportamento não ético resulta de ações que violam ou falham em considerar valores estruturais e obrigações. Essas ações são contrárias aos padrões éticos comuns adotados pela sociedade, como o código de ética, que devem assegurar a conduta profissional, de acordo com a prática aceitável.

Todos os profissionais da saúde enfrentam, rotineiramente, oportunidades de vivenciar conflitos de interesse. A maior razão é que o comércio de alimentos, nutrição e medicamentos são grandes negócios dentro das instituições de saúde.

Aceitar Presentes

Aceitar presentes da indústria e de vendedores é eticamente apropriado? Superficialmente, pode ser considerado um ato inofensivo. Entretanto, é importante considerar as consequências, em longo prazo, dessa atitude imediata. A maioria dos códigos de ética de profissionais da área da saúde considera que o profissional não deve aceitar ou oferecer presentes, incentivos financeiros ou outras considerações que afetam ou, razoavelmente, podem afetar o julgamento profissional.

Pesquisas são escassas sobre o assunto, e envolvem médicos e estudantes de medicina (2-5). Os resultados demonstram que há interações estreitas em aceitar presentes, que foram caracterizadas como “food, friendship and flattery” (comida, amizade e adulação), com a intenção de retornar o favor. Houve preferência nas práticas de prescrição, na escolha de marcas e na avaliação de medicamentos de empresas específicas, que ofereciam incentivos, comparado com as versões genéricas.

Portanto, os presentes de vendedores nem sempre vêm embrulhados em papel bonito! Mesmo quando os presentes não têm efeito nas práticas profissionais, há impressão pública de impropriedade, especialmente em presentes com valores substanciais. Os presentes da indústria variam em valores, desde o trivial (ex.: canetas, blocos de notas, calculadoras, marcadores de texto, agendas) aos substanciais (ex.: livros, equipamentos, jantares, vales-presente, viagens). Os mais onerosos, frequentemente, trazem oportunidades para a atualização de conhecimentos e melhoria do cuidado e serviços para os pacientes. Por outro lado, podem criar grandes oportunidades para a introdução de decisões tendenciosas.

Os presentes carregam expectativa implícita de reciprocidade. Ao aceitá-los, o profissional pode, não conscientemente, afetar a sua tomada de decisão. A simples presença do item em sua mesa de trabalho faz com que pense positivamente em relação ao representante, ao produto e à indústria. O risco é, subconscientemente ou conscientemente, promover tendência na tomada de decisão. Da perspectiva de um cliente, pode haver endosso de um produto.

Muitas vezes, o profissional não considera certas atividades como “presente”. De fato, identificar um conflito de interesse pode ser extremamente difícil, já que, como profissionais, tendemos a acreditar que somos eficientes em executar os nossos compromissos com integridade. Será? Há situações vivenciadas em nosso País que são claras. Por exemplo, certas grandes empresas preferem não investir diretamente em congressos científicos. Porém, para os mesmos eventos, cobrem despesas de profissionais específicos. Além disso, oferecem jantares, festas e muitos brindes durante o evento. Quando há patrocínio direto a congressos, há exigência de que os crachás identifiquem quem é prescritor, com cor ou símbolo que podem passar despercebidos. Os prescritores, identificados pela indústria, receberão “atendimento diferenciado”.

Prática semelhante acontece em instituições de saúde. A indústria, em geral, não oferece verbas para fundos de pesquisa e educação. Elas focam em incentivos a prescritores e indivíduos isolados, julgados importantes aos seus interesses financeiros.

Contratos de Gestão com a Indústria

Há situações ainda mais complexas do que a relação entre o profissional e o vendedor. Essas são executadas pelos gestores de instituições de saúde, particularmente as privadas. São os contratos de “gestão” de serviços e de produtos. O que significa isso? Muito bem. Com o objetivo de “economia e aumento de faturamento”, a indústria oferece um profissional ou toda uma equipe, “especializada” no atendimento nutricional, enteral e parenteral. Em troca, é fechado um contrato de exclusividade dos produtos vendidos por aquela empresa. A empresa “gestora” (vendedora) apresenta relatórios periódicos de produtividade financeira para a instituição. Ou seja, o quanto a instituição teve de receita, sem a necessidade de contratação, treinamento ou gestão de profissionais especializados. Para o gestor da instituição de saúde, é uma estratégia de negócio extremamente lucrativa e isenta de riscos e prejuízos. Há orgulho dos resultados financeiros. Do ponto de vista da empresa vendedora, a maior prova de “transparência ética” é ter seus profissionais se apresentando aos pacientes com a marca dela, ou da indústria, bordada no bolso ou no crachá. Parece que todos estão felizes e a engrenagem ficou perfeita! Então, onde está o conflito de interesse? Será que há algum? Bom, se analisarmos do ponto de vista do paciente e das fontes pagadoras, como as operadoras de planos de saúde, há situação mais tendenciosa e antiética do que essa? Pensando bem, talvez ainda seja mais antiético se o mesmo contrato existir, mas nenhum profissional envolvido apresentar a marca do vendedor ou da indústria no bolso ou no crachá. Será???

Por que, nesses contratos de “ouro” com a indústria ou vendedores de dietas e produtos nutricionais, o gestor da instituição de saúde não sente que há falha na ética? Talvez pelo fato de não ser, ou não se considerar, “profissional da saúde”? Ou por estar tendo benefícios pessoais mas, sim, estar trabalhando para o bem da instituição? Bom, aos olhos desses gestores, pode não haver conflito. Mas aos olhos da maioria, o conflito de interesse de tais contratos é inequivocável.

Como Prevenir Conflitos de Interesse nas Instituições de Saúde?

Para gestores que compreendem o seu papel nos conflitos de interesse, mesmo que indiretamente, seguem algumas sugestões que podem gerar ambientes mais éticos e transparentes.

  • Formação de equipe profissional interna, não envolvida financeiramente com vendedores de produtos relacionados à prática na instituição.
  • Regulamento institucional claro, sobre a relação de profissionais com a indústria. Cada profissional deve assinar Termo de Compromisso sobre a sua não relação financeira com produtos envolvidos em sua prática.
  • Desenvolvimento de fundo de pesquisa e educação, que define o investimento em profissionais de acordo com a produtividade.
  • Fornecimento de programas de educação continuada em conjunto, desenvolvidos por diferentes vendedores, a todos os membros da equipe profissional.
  • Solicitação da base de evidência científica disponível e as necessidades do paciente, além do custo, da segurança, da disponibilidade, da eficácia, da confiabilidade e da conveniência de várias opções.
  • Desenvolvimento de formulário de produtos baseado na especificação, ao invés de marca e nome de dieta/fórmula/produtos.

Referências

  1. Swan William I, Anchondo Inês M. Ethical selection of enteral and infant formula: demonstrating evidence-based practice and a responsible vendor relationship. J Am Diet Assoc. 2014;114(3):489-90.
  2. Coyle SL. Physician-industry relations. Part 1: Individual physicians. Ann Intern Med. 2002;36:396-402.
  3. Rothman DJ, McDonald WJ, Berkowitz CD, Chimonas SC, DeAngelis CD, Hale RW, et al. Professional medical associations and their relationships with industry: a proposal for controlling conflict of interest. JADA. 2009;301(13):1367-72.
  4. Yeh JS, Austad KE, Franklin JM CS, Campbell EG, Avorn J, Kesselheim AS. Association of medical students’ reports of interactions with the pharmaceutical and medical device industries and medical school policies and characteristics: a cross-sectional study. PLoS Med 2014;11(10):e1001743.
  5. Austad KE, Avorn J, Franklin JM, Kowal MK, Campbell EG, Kesselheim AS. Changing interactions between physician trainees and the pharmaceutical industry: a national survey. J Gen Intern Med. 2013;28(8):1064-71.

 

*Cristina Martins é nutricionista  pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutora em Ciências Médicas – Nefrologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Nutrição Clínica pela New York University (NYU – EUA), dietista-nutricionista Registrada pela Academy of Nutrition and Dietetics (AND-EUA), Especialista em Nutrição Renal pela AND, clínica certificada em Suporte Nutricional pela American Society of Parenteral and Enteral Nutrition (ASPEN-EUA), especialista em Suporte Nutricional Enteral e Parenteral pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (SBNPE), especialista em Nutrição Clínica pela UFPR, especialista em Alimentação e Nutrição pela UFPR, assessora científica da Fundação Pró-Renal Brasil – Curitiba, diretora-geral do Instituto Cristina Martins de Educação e Pesquisa em Saúde, presidente da SOLUS Soluções Estéreis – Curitiba e representante da AND e da Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN) para a padronização internacional do Processo de Cuidado em Nutrição no Brasil.