O risco de colapso das Santas Casas de Misericórdia e dos hospitais filantrópicos por causa de dívidas milionárias pode comprometer a assistência médica oferecida em cerca de 900 cidades brasileiras. Esses municípios têm as entidades como principais centros médicos. Para as 2,1 mil instituições beneficentes do país, estima-se que o rombo seja de R$ 11,2 bilhões, de acordo com um relatório da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.

O cenário nebuloso, revelado pelo Correio na edição de ontem, tem feito com que a administração dos hospitais, os funcionários, a comunidade e as prefeituras se mobilizem pela permanência do serviço. Em alguns municípios, os defensores das entidades fazem até rifa para tentar as Santas Casas. Esse é o caso da unidade de Tietê, distante 145km de São Paulo. Para não fechar as portas, a entidade lançou no início deste ano o sorteio de um carro zero-quilômetro. A figura do interventor da Santa Casa, antes vista como um cargo de prestígio e importância social, deu lugar, no início deste ano, ao posto burocrático de um interventor, com a tarefa de pôr ordem na casa. A dívida da unidade de Tietê já bateu os R$ 11 milhões e compromete o pagamento de fornecedores e de prestadores de serviço. Além da rifa, festas e leilões foram promovidos para arrecadar verbas e garantir o pagamento dos médicos.

A maternidade em que a recepcionista Carina Aparecida, 18 anos, nasceu foi fechada temporariamente em 2011. As gestantes em trabalho de parto tiveram que ser encaminhadas às cidades vizinhas. Ao analisar a situação do hospital, Carina diz nem acreditar no tamanho do prejuízo. “Todo mundo frequenta esse hospital, minha família tem a Santa Casa como referência. Se fecha, é uma perda sem tamanho”, lamenta. Ela compartilha da opinião de muitos especialistas da área e declara que é preciso uma mobilização da prefeitura e do governo estadual para resolver o impasse.

O secretário executivo do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Ênio Sevilla Duarte, também não descarta a responsabilidade dos municípios e estados, mas passa a conta para o governo federal. “Existe um peso financeiro muito forte em cima dos municípios porque esse é um serviço que pressiona outras áreas. Mas vale ressaltar que o problema acontece porque não conseguimos aprovar a destinação de 10% do Produto Interno Bruto para a saúde”, critica. Na sua opinião, a discussão tem que ser ampliada para envolver o legislativo. “A situação caótica pode ter sido influenciada pelas decisões do Poder Executivo, mas quem votou contra a ampliação dos recursos foram os deputados e os senadores, muitos deles dizendo que são comprometidos com a causa.”

O hospital de Tietê repete a situação da maioria dos hospitais filantrópicos que estão em cidades com menos de 30 mil habitantes. A lei determina que 60% dos procedimentos sejam feitos de forma gratuita, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas lá, esse percentual chega a 90%. O presidente da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas, José Reinaldo Nogueira, diz que esses são os que estão em piores condições. “Quanto mais as entidades atendem pacientes do SUS, mais difícil fica a situação porque o hospital não consegue captar recursos de outra forma e, geralmente, recebe um valor abaixo do custo para o procedimento.” Ele explica que os beneficentes das grandes cidades, como os de São Paulo, costumam realizar apenas 60% dos procedimentos por meio do SUS. Assim, conseguem fazer planos de saúde próprios ou se associam a outros para atender a demanda particular. “Como eles pagam melhor, é possível equilibrar as contas e fechar no azul.”

Por outro lado, Nogueira lembra que nos locais onde não é possível ampliar a demanda de pacientes com planos particulares, as entidades fecham, caso não recebam apoio das prefeituras. “Quando isso não acontece, normalmente há uma intervenção, o que não resolve a questão. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, temos um caso como esse. O hospital sofreu intervenção e recebeu, em um ano, R$ 45 milhões. Melhorou, mas provou que não foi problema de gestão, foi falta de verba. Só conseguiu sair do vermelho depois dessa injeção.”

A última Santa Casa que apresentou instabilidade financeira foi a do município paulista de Votuporanga, distante 521km de São Paulo. Na última sexta-feira, ela suspendeu o atendimento nas especialidades de neurologia e neurocirurgia. Além dos custos altos, já não havia médicos para realizar os procedimentos. As Santas Casas são instituições centenárias. A unidade de São Luís, por exemplo, abriu as portas em 1657 e é uma das mais antigas do país.

Fonte: Correio Braziliense