Acreditar, eu não. Recomeçar, jamais. A vida foi em frente e você simplesmente não viu que ficou para trás”. O samba de Dona Ivone Lara, resguardado de sua conotação amorosa, é uma boa alusão ao que pode acontecer com as instituições de saúde brasileiras que ignorarem uma tendência irreversível de aprimoramento da gestão de pessoas, processos e tecnologias que se firma cada vez mais no mercado mundial. A acreditação hospitalar e de outros players da cadeia de  saúde está perdendo sua característica de representar apenas um diferencial perante todo sistema.

Com uma rede que gira em torno de 6,5 mil instituições de saúde, que inclui apenas 200 hospitais acreditados, o Brasil ainda engatinha neste árduo, custoso e complexo processo de melhoria da gestão. Pelo retrovisor, os Estados Unidos e Canadá, por exemplo, veem nosso País com índices globais de acreditação de suas instituições que ultrapassam os 90%.

O caminho para chegar a este grau de excelência foi discutido por sete especialistas envolvidos no tema, que foram convidados pela Revista FH para um debate realizado no início de maio, em São Paulo. Durante quase três horas, eles falaram sobre os avanços, entraves e rumos que este mercado vivencia. A conclusão uníssona é de que a acreditação está se tornando mais e mais uma condição sine qua non de sobrevivência dos players que atuam no negócio de saúde. “As instituições que não têm acreditação vão deixar de existir. O que eu gostaria é que a sociedade e as operadoras exigissem a acreditação como um filtro de quem fica e quem sai do mercado”, opina Francisco Balestrin, presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), que congrega 45 hospitais que possuem alguma acreditação.

Com foco em segurança do paciente e qualidade da assistência, a acreditação é um sistema de avaliação e certificação da qualidade de serviços de saúde obtida de forma voluntária e periódica pelas instituições de saúde. No Brasil, a Organização Nacional de Acreditação (ONA) é quem expede os selos de acreditação de acordo com os graus de qualidade de cada unidade de saúde, que podem variar de I, II a III. Representadas por consultorias, também atuam por aqui acreditadoras internacionais, como a Joint Commission International (JCI) e a Accreditation Canadá. A ONA, de acordo com dados disponíveis em seu site na Internet, já chancelou 301 instituições brasileiras, sendo 156 hospitais. A JCI, por sua vez, figura com 33 entidades acreditadas no País, enquanto que a Canadá soma 21 acreditações.

O baixo número global de instituições acreditadas, contudo, contrasta com o expressivo crescimento da quantidade de acreditações registradas nos últimos anos. No ano passado, por exemplo, 50 novas instituições receberam certificação pela metodologia ONA. Nos três primeiros meses de 2012, outras 19 organizações de saúde ganharam o selo. Pela JCI, apenas em 2011, 95 instituições de saúde estiveram em preparação para acreditação, entre elas 43 hospitais, 20 ambulatórios, 15 programas de cuidados clínicos e três operadoras de planos de saúde.


Incentivar financeiramente?

O maior problema para a expansão da acreditação no Brasil é, sem dúvida, o alto custo associado que esse processo carrega, pois ele envolve uma série de mudanças estruturais, organizacionais e de gestão que podem durar de 24 a 36 meses. Como é o próprio hospital que precisa bancar este custo e nem sempre a operadora ou o paciente reconhecem financeiramente essas melhorias, a maioria das instituições ainda trata o tema em segundo plano.

A Unimed BH, por exemplo, coloca em prática há oito anos um projeto de incentivo financeiro para seus hospitais credenciados que buscam a acreditação. A superintendente de provimento à saúde da empresa, Monica Castro, conta que R$ 65 milhões já foram investidos nesse programa e que em 2012 outros R$ 20 milhões serão aportados. Dependendo da acreditação obtida, o hospital recebe um bônus na diária global que varia de 7% a 15%. “Há oito anos, tínhamos dois hospitais acreditados. Hoje, temos 23, que correspondem por 50% dos nossos hospitais”, diz a executiva, que assegura que o processo de acreditação gera economia para a operadora no médio e longo prazo.

Apesar de ser concorrente da Unimed, o diretor da rede de hospitais da Amil em São Paulo, Vinicius Rocha, reverencia os resultados da subsidiária mineira e concorda que no estágio atual do mercado os incentivos financeiros são necessários. “Esse modelo de incentivo faz parte, porque o processo inicial de acreditação tem uma demanda de investimento muito grande com treinamento, estrutura física etc”, diz ele, que ressalva sua opinião dizendo que para o futuro, quando o mercado estiver mais consolidado, este modelo de incentivo não será o melhor caminho.
Balestrin, da Anahp, é contra incentivos financeiros para hospitais. Ele afirma que a acreditação não deveria ter como objetivo melhorar os indicadores econômicos e financeiros da instituição e, sim, focar no aspecto da segurança do paciente e da melhoria da qualidade assistencial.

“Normalmente, o hospital faz acreditação e quer renegociar as diárias e taxas. Acho que ele não fez mais do que a obrigação ao se acreditar e trazer mais qualidade para seu serviço. Precisamos participar de uma forma sincera desse mercado”, pontua o presidente da associação. Ele ainda sustenta que os incentivos iniciais podem comprometer o resultado dos hospitais no futuro. “Quanto que este incentivo custa posteriormente para as instituições? O que ouvimos é que os hospitais de Belo Horizonte têm dificuldade de obter bons resultados econômicos/financeiros”, revela.

Na visão do CEO da acreditadora brasileira IQG e que comanda também a Accreditation Canada no Brasil, Rubens Covello, a questão do custo é bastante complexa. “Consigo entender que a questão estrutural dentro do custo é importante. Mas por que a acreditação é cara? O custo está na capacitação e no envolvimento das pessoas”, diz. Garantir a qualidade diante da recorrente migração de profissionais de uma instituição para outra é bastante difícil. “Está errado dentro das universidades. Não temos nada sendo dirigido para a questão da segurança do paciente, para a gestão do negócio”, argumenta.


Falta educação

A ausência da visão de trabalho em uma instituição acreditada dentro das universidades foi outro problema levantado pelos debatedores. Para Rocha, da Amil, a mudança de cultura dentro da cátedra deve começar a ocorrer agora para dar resultados daqui a 20 ou 30 anos. “Esse trabalho precisa ser feito para que no futuro tenhamos um corpo médico mais aculturado e que possa estar mais confortável com a adesão de práticas exigidas pela acreditação”, afirma.

Balestrin, da Anahp, compartilha da mesma opinião. “Jovens médicos não sabem como funciona o negócio em si. Os médicos e hospitais não conversam entre si. A discussão não é travada com eles”, diz. Ele ainda afirma que a dicotomia entre o corpo clínico e o corpo hospitalar tende a desaparecer com a mudança no modelo de gestão das unidades de saúde. “Há quatro anos, começamos a incentivar a governança corporativa de nossos associados. Hoje, sob esse ponto de vista, eles se modernizaram. Agora, estamos apostando no modelo de governança clínica que, ,quando estiver claro, será entendido melhor pelos médicos. A partir disso, as duas governanças passarão a dialogar e será possível desenvolver projetos juntos. Nós acreditamos que o modelo de remuneração dos médicos mudará com isso. E quem não estiver preparado, vai sofrer”, prevê o executivo.

Heleno Costa Junior, diretor de relações institucionais e coordenador de educação do Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA), que mantém parceria com a JCI, aponta que é preciso haver um convencimento de que aquilo vai melhorar o trabalho dos prestadores. “Os médicos dizem que a acreditação burocratiza a assistência, mas isso porque hoje tudo é feito sem padrões. O fato de você exigir que ele escreva um prontuário já é sintoma de burocratização para eles”, relata. Covello completa dizendo que é necessário ter ferramentas para inserir esse profissional dentro da gestão da qualidade e segurança.


Colaboradores envolvidos

Além do médico, é extremamente importante envolver os outros profissionais prestadores de serviço terceirizados dentro do hospital. E a missão de fazê-los entender as novas práticas e filosofias inerentes à acreditação não é simples. Costa Junior diz que do ponto de vista do acreditador que está avaliando a instituição, não existe diferença no grau de exigência de análise dos resultados do prestador de serviço. “O avaliador não olha com distinção, ele vai fazer o mesmo pente fino nos processos relacionados à nutrição, limpeza, radiologia e laboratório, por exemplo”, afirma.

Giovanna Araújo, diretora-técnica do Grupo Brasanitas, que atua na área de higienização hospitalar, diz que na era da acreditação, o prestador precisa entender para atender o cliente. “A questão do terceiro está deixando de existir. Eu já faço parte da cadeia. Algumas instituições já nos chamam de time. Houve uma mudança de conceito. Já não é aquele serviço isolado, é um serviço integrador”, afirma a executiva, que aposta no treinamento e capacitação dos seus profissionais para que eles atendam às exigências dos hospitais acreditados.

Um desafio para as instituições de saúde já acreditadas é se fazer valer dessa vantagem diante dos olhos dos pacientes, que quase sempre não fazem ideia do que significa a acreditação daquele hospital. Balestrin, da Anahp, diz que os hospitais não conseguem passar para os usuários uma percepção de valor em saúde. Rocha, da Amil, afirma que a empresa vem tentando conscientizar os clientes. “Mas acho que ainda tem muito caminho pela frente”, opina.

Costa Junior da CBA contou que a JCI vai começar em 2013 a incluir na equipe de avaliação um usuário do sistema de saúde. “A ideia é que a instituição possa fazer um grupo de pacientes que poderia, através de um treinamento, participar das avaliações”.

Raquel Lisboa, coordenadora da área de qualidade da gerência de relações com prestadores de serviço da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), diz que o órgão regulador criou um programa que visa aumentar a quantidade de informações ao paciente. Segundo ela, após a implementação de uma instrução normativa que está sendo regulamentada, as operadoras precisarão apresentar aos usuários um guia médico que faça distinção entre os prestadores acreditados e os não acreditados. “Quando o paciente for procurar por um profissional, ele vai saber quem é acreditado. Estamos trabalhando para criar uma legenda com a linguagem clara que mostre ao usuário qual o benefício de buscar um prestador acreditado. O que a ANS vem incentivando é a questão da divulgação”, resume.

O futuro da acreditação das instituições de saúde no Brasil ainda é nublado e vai levar algum tempo para desanuviar. Todos os debatedores creem que serão necessários muitos anos para que a prática acreditadora deslanche no País. Balestrin, da Anahp, sugere que o governo federal institua uma política compulsória para a acreditação dos seus hospitais federais. “Até porque esses hospitais são os que mais precisam de acreditação”.

Fonte: ANS