Financiamento e remuneração são temas que não saem das rodas de discussão dos gestores de Saúde quando o assunto é o Sistema Único de Saúde (SUS). Eleuses de Paiva Vieira, 1º vice-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB) e ex-deputado federal, é um dos críticos à forma de financiamento atual do sistema por parte do governo federal e falou sobre isso durante a etapa Sul-Sudeste do 1º Fórum Nacional da Comissão Nacional Pró-SUS, formada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e a AMB, realizado em Curitiba em maio.

Vieira apresentou dados de um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), que foi produzido após uma auditoria nas contas da Saúde. A auditoria, segundo o ex-deputado federal, foi estimulada pela Câmara dos Deputados por uma proposta dele e do deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS). Hoje, o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem um modelo de Saúde com universalidade, integralidade e equidade. Com base nesta informação, o TCU fez uma comparação com países que têm modelos semelhantes, como Inglaterra e Noruega, mostrando os investimentos. E a resposta é alarmante: o Brasil investe um décimo do que esses países investem per capita no setor.

Além disso, outro dado que mostra uma grande incoerência é com relação ao financiamento. “Temos um modelo que prevê universalidade, um modelo público. Nos países que têm esse modelo, normalmente quando comparamos o público e o privado, o maior financiamento vem do setor público. O gasto geral público com Saúde fica entre 85% e 95%. No entanto, no Brasil, temos o contrário: dos 100% que são gastos com Saúde, 41,7% são públicos e 58,3%, privados. Mas os 41,7% que são públicos são aplicados para atender entre 80-85% da população. Isso quer dizer que com 41,7%, atendemos 80-85%, e com 58%, atendemos 15-20%. É uma desigualdade total. A comparação entre a per capita pública e a per capita privada é absurda”, diz.

Com relação ao orçamento da Saúde, Vieira explica que há diferença entre o que é orçado e o que é executado. Segundo dados apresentados pelo vice-presidente da AMB, em 2012 o orçamento da Saúde ficou em torno de R$ 95bilhões, mas o que foi executado girou em torno de torno de R$ 70bilhões. Por isso, ele diz que a Saúde trabalha com um número superestimado. O restante é feito por empenho. “Mas o TCU mostrou que quando um valor é empenhado, pode ser gasto em outro ano. Se foi empenhado, teoricamente o valor foi gasto. Porém, o governo não coloca objeto no valor que foi empenhado e, por isso, a Saúde não consegue gastar depois. Segundo um levantamento que fizemos na Câmara de Deputados, se levarmos em conta os últimos 10 anos, quase R$ 170 bilhões de reais sumiram, ou seja, não foram investidos”, afirma.

Na avaliação do ex-deputado federal, a Saúde enfrenta uma situação de subfinanciamento e ele diz, ainda, que a gestão do dinheiro por parte do governo é precária, justamente pelo dinheiro que é “perdido”. “Fico em dúvida se esse dinheiro é perdido porque politicamente não se quer investir em Saúde, ou se são as duas coisas: perde-se dinheiro porque politicamente não se quer investir em Saúde e, ao mesmo tempo, as pessoas são incompetentes para gastar. Os recursos existem, mas as pessoas não têm competência para gastar e de que forma gastar”, avalia Eleuses Vieira.

Mas os dados que chocam as instituições de Saúde não param por aí. Ainda durante a palestra, o vice-presidente da AMB mostrou que de acordo com dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)na década de 2010, do total de gastos das pessoas em Saúde, seja na rede pública ou na privada, 40% são em medicamentos. Com base nisso, o governo decidiu estudar como era feita a política de medicamento, criando a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED),para poder acompanhar a política e evitar desvios ou danos. O objetivo era baratear o custo para a população. O discurso, segundo Vieira, “era fantástico”. Porém, em uma auditoria na CMED, o governo selecionou 50 princípios ativos que representavam os maiores gastos, algo entre 50-60%, para, daí, estudar o valor pago pelos brasileiros.

“Dos 50 princípios ativos, em 45 deles nós temos a maior média de preço do mundo. Em 23, não é média: é o maior preço praticado no mundo. Não podemos deixar de levar em consideração o poder aquisitivo das pessoas que moram na Inglaterra ou no Canadá, por exemplo, e no Brasil. Aqui, pagamos o medicamento mais caro do mundo. Tudo isso para mostrar a seriedade do governo: cria-se uma câmara para baratear o preço do medicamento, mas ela serviu para quê? Qual foi o interesse?”, indaga.

Projetos de Lei

Outro ponto abordado por Eleuses Vieira durante a palestra foi com relação aos projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional e que podem ter impacto direto no setor de Saúde. O primeiro projeto que deve ser discutido é aquele que define o que são ações de Saúde. Segundo ele, a Lei, quando aponta um mínimo a ser investido, estabelece que esse mínimo seja investido em ações de Saúde. “A questão é que não podemos falar que esgoto, por exemplo, não é ação de Saúde. Qualidade do leite da vaca, outro exemplo, também é ação de Saúde. Dessa forma, daqui a pouco o governo destina dinheiro até para a agricultura e pecuária dizendo que está investindo em ações de Saúde ou de saneamento básico. Por isso, precisamos definir exatamente o que são essas ações previstas na Lei, justamente para evitar que o dinheiro da Saúde vá pelos ralos”, reforça.

O segundo projeto que deve ser amplamente discutido é com relação à desvinculação de receitas. Segundo Vieira, o sistema já está subfinanciado mesmo com os valores mínimos que devem ser investidos estabelecidos em Lei. “Se acabar com as vinculações de receitas, sem dúvidas os recursos vão diminuir drasticamente. O argumento usado pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros, é que o projeto não vai diminuir os recursos; pode até aumentar. Mas se os governantes querem aumentar os recursos, não é preciso acabar com a desvinculação. Esse projeto preocupa a Saúde como um todo, porque já temos um setor subfinanciado e o governo quer diminuir ainda mais os recursos para resolver a crise econômica do país”, salienta.

Para desmentir a informação de que não se tem mais dinheiro para investir em Saúde, o ex-deputado federal apresentou informações do TCU que mostram que a receita líquida da União nos últimos cinco anos aumentou 261%. Na avaliação dele, com a vinculação de receitas prevista em Lei, esperava-se que a Saúde tivesse esse mesmo aumento de recursos. Porém, o setor recebeu menos – cerca de 205%. Além disso, ele lembra que os custos continuam tendo aumento de preço, o que torna a situação ainda mais dramática.

União omissa com relação aos investimentos dos Estados

A conta que todo o setor filantrópico conhece e divulga também foi abordada por Eleuses Vieira em sua palestra. Ele citou que em 2000, dos gastos gerais com a Saúde, entre 60 e 65% dos recursos vinham da União e os Estados e municípios arcavam com 30-35%. Essa seria a forma correta de aplicação de recursos, na avaliação de Vieira, já que do dinheiro que se arrecada, 65-70% ficam com a União. Ou seja, a União coloca mais dinheiro, porque a arrecadação é maior.

Mas, nos últimos 15 anos, infelizmente essa não é a realidade, pois gradativamente a União vem diminuindo a porcentagem. Hoje, o valor fica em torno de 45%, enquanto que Estados e municípios disponibilizam 55%. “Isso quer dizer que dos valores que são gastos hoje, quem mais tem assumido o papel são os Estados e municípios. E o que sentimos é que gradativamente a União vai diminuindo a sua responsabilidade e o seu compromisso de investir na Saúde”, reforça.

Confira no site da Femipa outros trechos da matéria onde o especialista fala sobre a evolução do sistema de saúde no Brasil: www.femipa.org.br

Evolução do sistema de saúde e subfinanciamento do SUS

Para finalizar a palestra, o vice-presidente da AMB fez uma comparação entre o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e o Sistema Único de Saúde (SUS), que foi criado em 1988. Para que todos pudessem entender a comparação, ele fez a seguinte explanação:

“Na época do INAMPS, o sistema de Saúde pública no Brasil funcionava da seguinte forma: só tinha direito à assistência à Saúde gratuita quem tinha carteira assinada. O sistema era ligado à estrutura da previdência social e era financiado com 30% do que era arrecadado. Hoje, a previdência social está em torno de R$ 500 bilhões. Esse número deve ter diminuído um pouco, porque com o desemprego, a arrecadação cai. Mas somente para fazer uma comparação, se o INAMPS existisse hoje, teria financiado algo em torno de R$ 160bilhões, para atender somente quem tinha carteira assinada. Em 1988, a Constituição acabou com o INAMPS e deu lugar ao SUS, tirando a vinculação com a previdência. Dessa forma, as fontes de financiamento seriam outras.

De recursos de 2015, o que foi efetivamente gasto ficou em torno de R$ 108 bilhões. Mas a Constituição ampliou o serviço público de Saúde para todos os brasileiros, não só pra quem tem carteira assinada. Ou seja, praticamente dobrou a população a ser atendida. A CF/88 deu um salto nos direitos sociais sem prever, na mesma proporção, o aumento dos recursos.

Se o INAMPS ainda existisse, teríamos R$ 170 bilhões. Mas a população dobrou e só tivemos R$ 108 bilhões. Como fechar essa conta? Na época do INAMPS, a per capita era bem maior. Metade da população, com o dobro do financiamento. Provavelmente as misericórdias não estariam na situação que estão hoje. Se pelo menos 10% da receita líquida fosse investido, a situação estaria um pouco melhor. Essa era a grande briga dos defensores da Saúde no Congresso Nacional, pois os 10% resgatariam o valor que era investido no INAMPS, por exemplo, mas nem isso conseguimos. O governo não investe hoje no SUS o que era investido naquela época. São 30-40% a menos. Esse é o exemplo mais escarrado que temos de subfinanciamento do setor. O problema não é o SUS; o problema é a falta de recursos”, finalizou.