De um tempo para cá o avanço do Direito Penal sobre a saúde tem se mostrado cada vez mais notório, especialmente sobre áreas que, antes, quando dialogadas com o Direito, tratavam tão somente – ou majoritariamente – da responsabilidade civil e/ou ética dos seus profissionais. Assim, em meados de dezembro de 2024, uma decisão do STJ trouxe mais um capítulo à (já não tão curta e recente) história de construção, consolidação e expansão de um Direito Penal médico.

Desta vez, em sede do HC 971.681-GO, o min. Herman Benjamin foi instado a decidir sobre a prisão preventiva de uma biomédica que foi presa em flagrante em Goiânia/GO, após morte de sua paciente (por parada cardíaca) em uma clínica de procedimentos estéticos. Em razão desse fato, em um momento sabidamente embrionário do procedimento penal, foram vislumbrados três crimes distintos: exercício ilegal da Medicina (art. 282, CP), execução de serviço de alto grau de periculosidade (art. 65, CDC) e, ainda, venda ou manutenção em depósito para venda matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo (art. 7º, IX, lei 8.137/90).

O pedido liminar defensivo que, em suma, pretendeu a revogação da prisão cautelar, ainda que mediante a aplicação de cautelares alternativas ou a substituição por prisão domiciliar, foi rejeitado. O ministro registrou que a matéria levantada não havia sido examinada pelo Tribunal de origem, fato este que o levou a entender que a intervenção da Corte nesta ocasião restaria inviabilizada. Contudo, à vista da possibilidade da súmula 691 do STF ser superada em casos de flagrante ilegalidade ou de teratologia da decisão impugnada, com a concessão da ordem de ofício, parece razoável sinalizar, desde já, que o ministro também não observou qualquer problema na decisão impugnada.

Desta maneira, ganharam destaque a prisão em flagrante de uma biomédica, a conversão dessa prisão em preventiva e, principalmente, a manutenção desta prisão mesmo após questionada por defesa técnica. Foi exatamente essa tríade, inclusive, que ganhou as manchetes dos mais diversos canais de comunicação e redes sociais. Apesar disso, outro assunto merece(ria) idêntica (ou até maior) visibilidade, que é a reprodução de interpretações tecnicamente apressadas de importantes institutos e conceitos penais – leituras essas que costumavam ser vistas, até então, quando réus pertenciam a um outro núcleo do Direito Penal, isto é, quando tratávamos de réus presos por crimes patrimoniais comuns, tráfico de drogas, etc. Esse fenômeno, aliás, ao fim e ao cabo, parece logo confirmar e reforçar o avanço do Direito Penal sobre a atuação de profissionais da saúde, isto é, médicos, biomédicos, enfermeiros, etc.

O conceito nuclear que integrou a decisão do min. Herman Benjamin e que merece um enfrentamento vertical é o de prisão preventiva. Essa prisão, que é essencialmente uma medida de cautela, busca garantir o desenvolvimento normal do processo e, consequentemente, a eficaz aplicação do poder de atribuir pena1. Daqui já é possível perceber que essa prisão em absolutamente nada se confunde com a prisão que decorre de uma sentença condenatória e, também, que os seus requisitos e fundamentos serão distintos dos necessários à concessão de, por exemplo, medidas cautelares reais (do fumus boni iuris e do periculum in mora), regidas, bem se sabe, por vasta e rica doutrina civilista.

Assim, o que se exige para o decreto de uma medida cautelar como a prisão preventiva, guiada, agora, por uma doutrina penal e processual penal, é a demonstração do fumus commissi delicti e, muito, do periculum libertatis. Importa(rá), então, a probabilidade da ocorrência de um delito (não mais de um direito) e, ainda, uma situação de perigo concreto criada pela conduta do imputado. Aqui, o risco que deriva do atraso inerente ao tempo que pode transcorrer até uma sentença definitiva passa a ser irrelevante e cede espaço para o risco de frustração da função punitiva (por fuga do acusado), de graves prejuízos ao processo (pela ausência do acusado) ou para qualquer outro risco ao normal desenvolvimento do processo. Em síntese, o perigo não brota mais do lapso temporal entre provimento cautelar e o definitivo, mas, sim, da situação (potencial, concreta e objetiva) de liberdade do sujeito passivo2.

O CPP, aliás, acompanha essa sistemática. O seu art. 312 estabelece expressamente que a prisão preventiva só poderá ser aplicada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. Neste exato sentido, decisões recentes do STJ têm reforçado a instrumentalidade desta medida cautelar e, ainda, a necessidade de o tomador de decisão demonstrar concretamente o periculum libertatis3.

É neste enredo que o princípio da provisionalidade, que rege a aplicação da prisão preventiva, ganha destaque. Ao tempo que se nota que a prisão preventiva é situacional, ou seja, tutela uma situação fática, esse princípio passa a indicar que, desaparecido o suporte fático legitimador da medida cautelar, a segregação precisa cessar imediatamente. Além disso, essa provisionalidade recebe contornos ainda mais relevantes da redação do art. 282, § 6º, do CPP, que estabelece que “a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”.

Esses artigos transmitem aos magistrados uma mensagem simples: a prisão preventiva pressupõe o esgotamento das possibilidades de substituição por medidas cautelares diversas. Dito de outro modo, o decreto dessa cautelar mais gravosa deverá suceder obrigatoriamente a análise do preenchimento dos seus requisitos e, depois, da insuficiência das medidas cautelares mais brandas. E não resta dúvida de que a inviabilidade dessas medidas alternativas não é e não pode ser presumida. Muito pelo contrário. Se for este o caso, deverá o(a) tomador(a) de decisão explicar textualmente porque as considerou insuficientes.

Assim, superado esse mergulho na teoria das prisões cautelares, é preciso destacar que a prisão preventiva do caso concreto foi decretada para impedir que a biomédica continuasse fazendo procedimentos estéticos. Sendo essa uma alegação que, sim, pode(ria) eventualmente justificar uma medida cautelar – até mesmo a prisão -, faltaria verificar ainda se outras alternativas não dariam conta desse objetivo. Bastaria verificar, antes do decreto da prisão, se o comparecimento periódico em juízo, a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, a proibição de contato com determinadas pessoas, a proibição de ausentar-se da Comarca, o recolhimento domiciliar no período noturno, a suspensão do exercício de natureza econômica ou financeira e/ou a monitoração eletrônica não impediriam que a biomédica permanecesse atuando. A resposta parece se mostrar afirmativa, apesar de o magistrado singular, o Tribunal de Justiça e STJ terem entendido que a restrição de liberdade seria o único meio idôneo para este fim.

Apesar desse entendimento, é preciso argumentar que a prisão, neste caso, não se apresenta como a única maneira de se fazer cessar a prática de novas infrações penais – e daqui já se nota que o seu decreto e sua manutenção se mostraram equivocados. Isso pode ser compreendido a partir do bom senso (às vezes é importante recorrer a ele), mas, principalmente, a partir do que estabelece o art. 282 do CPP e, também, do alcance das medidas cautelares alternativas previstas no art. 319 deste mesmo diploma legal.

Se, então, os incisos do art. 282 dispõem que o magistrado, ao aplicar qualquer medida cautelar, inclusive a prisão preventiva, deverá levar em consideração a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado, deve(ria) ter considerado que as penas (de detenção) dos delitos imputados à biomédica eram substancialmente baixas – o que reflete objetivamente na avaliação da gravidade do crime supostamente praticado e, naturalmente, da proporcionalidade e necessidade da medida definitiva a ser tomada – e, claro, que os supostos delitos foram cometidos em um local conhecido e bem delimitado no espaço e por uma pessoa que, muito provavelmente, indicaria um local onde pode(ria) ser encontrada. Por aqui logo se percebe, portanto, que a possibilidade real de encontrar a biomédica e de controlar as suas atividades indica fortemente que a sua prisão se mostra não só desnecessária como, também, ilegal e inconstitucional.

Do mesmo modo, se o parágrafo 6º deste art. 282 estabelece que este mesmo magistrado deve ainda checar a utilidade das medidas cautelares mais leves, deve(ria), então, ter, pelo menos, explicado o porquê a proibição de acesso à clínica e a estabelecimentos similares, a proibição de contato com todo e qualquer paciente, a suspensão de sua atividade econômica e a monitoração eletrônica não serviriam para fazer cessar a reiteração criminosa – se esse for, de fato, o caso. Nada disso parece ter acontecido.

Neste caso, aliás, a clínica de procedimentos estéticos foi interditada e isso aconteceu pronta e justamente para evitar que a biomédica continuasse atuando. Vê-se, pois, por este ângulo, um esvaziamento da serventia da preventiva e, quem sabe, até mesmo das demais medidas cautelares, que, como prevê o CPP, não precisam ser obrigatoriamente adotadas (art. 321, CPP).

Apenas a título argumentativo, ainda que a clínica não tivesse sido interditada, parece que as demais medidas cautelares alternativas também teriam o condão de interromper as atividades desta profissional. Ocorre que é conhecida a dificuldade de se executar e fiscalizar o cumprimento dessas outras medidas – fato esse que torna o decreto da prisão preventiva uma medida mais conveniente. Contudo, a superação dessa dificuldade é ônus do Estado e a biomédica – assim como todo e qualquer profissional da saúde – não poderia estar pagando por isso.

Portanto, é relevante assentar que as cautelares diversas da prisão poderiam – logo, deveriam – ter sido aplicadas neste caso (como visto, poderia até ter sido discutido o cabimento da liberdade provisória sem qualquer cautelar) e, assim, a prisão da biomédica se mostrou abusiva. Desta maneira, nota-se não só o avanço do Direito Penal sobre a área médica, mas, especialmente, o avanço do bem conhecido Direito Penal simbólico sobre a atuação de muitos profissionais da saúde, que, sabidamente, vem minando todo e qualquer garantia do cidadão.

1 MARTINEZ, Sara Aragoneses et al. Derecho Procesal Penal.  2 ed. Madrid, Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, 1996, p. 387.

2 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 357.

3 Habeas Corpus 945.542, ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 4/11/24.

Fonte: Portal Migalhas