A Súmula Vinculante 60, publicada pelo STF em 20/9/24, tem como principal objetivo harmonizar a análise e fornecimento de medicamentos pelo SUS e os processos de judicialização relacionados ao tema. Essa súmula está vinculada ao Tema 1.234, que abordou questões relevantes sobre a judicialização da saúde, estabelecendo um novo patamar para o tratamento dessas demandas, com base nos acordos interfederativos homologados pelo STF no RE 1.366.243/SC.
A Súmula Vinculante tem como objetivo promover uma articulação entre os Poderes Judiciário e Executivo, visando organizar o fluxo de demandas judiciais e administrativas. No entanto, é importante destacar que, embora essa articulação busque padronizar os procedimentos, podem surgir obstáculos ao acesso à justiça, com restrições que, em excesso, podem dificultar o acesso de cidadãos a medicamentos e tratamentos não oferecidos diretamente pelo SUS.
Por ser uma Súmula Vinculante, seu conteúdo tem observância obrigatória tanto pelo Judiciário quanto pela Administração Pública, estabelecendo uma regra uniforme para o tratamento de casos similares. Em situações de descumprimento ou divergência nas decisões judiciais, a reclamação constitucional se torna um instrumento relevante, conforme previsto no art. 102, I, “l”, da CF/88, assegurando que o entendimento do STF seja respeitado e evitando interpretações conflitantes decorrentes da aplicação da súmula.
Os três acordos homologados pelo STF no contexto do Tema 1.234, referenciados pela Súmula Vinculante 60, estabelecem seis diretrizes principais para a gestão dos pedidos e para a judicialização da saúde, quais sejam:
Competência;
Definição de medicamentos não incorporados;
Custeio;
Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamento pelo SUS;
Plataforma nacional;
Medicamentos incorporados.
No que tange à primeira diretriz, que trata da fixação de competência, cria-se uma regra de competência jurisdicional absoluta para demandas relacionadas a medicamentos não padronizados pelo SUS, mas registrados pela ANVISA. Quando o valor anual do tratamento com o fármaco for igual ou superior a 210 salários-mínimos, a competência será da Justiça Federal.
O valor do tratamento é calculado com base no CAP – Coeficiente de Adequação de Preços aplicando o PMVG – Preço Máximo de Venda ao Governo, estabelecidos pela CMED – Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. Esse critério reflete o real custo para a Administração Pública, que adquire medicamentos por preços inferiores ao valor praticado no setor privado.
Para os fármacos cujo valor anual é inferior a 210 salários-mínimos, a competência será definida de acordo com as diretrizes sobre custeio, que serão abordadas na terceira diretiva do acordo, relacionada ao custeio.
A segunda diretriz estabelece a definição de medicamentos não incorporados, fundamental para evitar interpretações discrepantes e assegurar a correta aplicação da Súmula Vinculante 60.
Conforme o item 2.1 do acordo homologado, medicamentos não incorporados são aqueles que não constam na política pública do SUS; incluem medicamentos previstos nos PCDTs – Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para outras finalidades (experimentais), medicamentos sem registro na ANVISA, ou aqueles usados fora da indicação aprovada (off-label) sem respaldo em PCDTs ou que não integrem listas do componente básico.
A clareza conceitual desse termo visa proporcionar segurança jurídica e uniformidade no tratamento das demandas relacionadas a medicamentos não incorporados, evitando que sua aplicação gere dúvidas ou interpretações conflitantes no âmbito judicial.
A terceira diretriz trata dos critérios de custeio, observando a competência para os casos em que o valor do tratamento anual, valor da causa, não atinge 210 salários-mínimos.
As ações envolvendo medicamentos não incorporados e cujo valor da causa seja inferior a esse limite poderão ser ajuizadas na Justiça Estadual, atribuindo regras de ressarcimento e financiamento dos medicamentos não incorporados entre os entes federados União e Estados membros.
Quanto ao valor da causa, o acordo interfederativo estabelece que:
Valor da causa entre 7 e 210 salários-mínimos: As ações podem ser propostas na Justiça Estadual, onde o ente estado demandado custeará o tratamento. Após o custeio, o ente estado poderá ser ressarcido em 65% dos valores desembolsados (3.3.1). Para medicamentos oncológicos, o percentual de ressarcimento será de 80% (3.4).
Valor da causa abaixo de 7 salários-mínimos: As ações devem ser propostas na Justiça Estadual, sendo que o ente estado demandado assumirá integralmente os custos do tratamento.
Nos casos em que o valor da causa seja inferior a 7 salários-mínimos, o custeio deverá ser integralmente assumido pelo ente estadual, sem possibilidade de ressarcimento.
Novamente, para o valor da causa se aplica o CAP-PMVG – Coeficiente de Adequação de Preços por Preço Máximo de Venda ao Governo.
Nos casos em que o medicamento prescrito não possui registro na ANVISA, a competência para julgar e custear o tratamento é da Justiça Federal, sendo responsabilidade da União assumir integralmente os custos. Aplica-se, nesse contexto, a tese fixada no Tema 500 do STF, afetada por repercussão geral.
A quarta diretriz trata da Análise Judicial do Ato Administrativo de Indeferimento de Medicamento pelo SUS, estabelecendo uma regra de observância obrigatória para a atuação judicial.
O juízo competente deve, sob pena de nulidade do ato jurisdicional, conforme os arts. 489, §1º, V e VI, e 927, III, §1º, ambos do CPC, proceder à análise tanto do ato comissivo ou omissivo da CONITEC em relação à não incorporação do fármaco, quanto da negativa de fornecimento na via administrativa.
O juízo deve verificar se a decisão de não incorporar o medicamento foi devidamente justificada, uma vez que a validade do ato administrativo depende da regularidade dos fundamentos que o sustentam.
É relevante destacar que, mesmo quando a CONITEC não recomenda a incorporação de um medicamento, a análise judicial continua essencial. A ausência de incorporação ou de análise pela CONITEC não implica automaticamente o indeferimento da demanda judicial. Cabe ao Judiciário avaliar as necessidades específicas do caso concreto, assegurando que o direito à saúde seja respeitado e que a omissão administrativa não cause prejuízos ao paciente.
O autor da ação deve demonstrar a imprescindibilidade do medicamento não incorporado, com base na Medicina Baseada em Evidências, comprovando não apenas a segurança e eficácia do fármaco, mas também a inexistência de substitutos terapêuticos já fornecidos pelo SUS.
É extremamente importante reiterar que a não recomendação pela CONITEC não significa que o fármaco não poderá ser deferido judicialmente. Pelo contrário, nos termos da STA 175-AgR, o ministro relator Gilmar Mendes decidiu o seguinte: “deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.”
A ressalva mencionada pelo ministro relator Gilmar Mendes é clara: Sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente, o tratamento oferecido pelo SUS deve ser priorizado. Isso quer dizer que, mesmo em casos de não recomendação pela CONITEC, o ônus da prova continua a recair sobre o autor, que deve demonstrar, de forma inequívoca, a ineficácia ou inadequação do tratamento disponibilizado pelo SUS.
Entretanto, essa exigência probatória rigorosa pode representar um obstáculo significativo para muitos pacientes do SUS, que frequentemente não possuem os recursos financeiros ou acesso a especialistas para elaborar a prova técnica necessária.
A continuidade de utilização do e-NATJUS se mostra essencial para garantir uma análise qualificada do caso concreto, funcionando como um órgão de assessoramento técnico ao juízo. Ele auxilia na avaliação de demandas de saúde ao fornecer pareceres embasados em evidências científicas, permitindo que o juízo tome decisões mais informadas e seguras. Dessa forma, o e-NATJUS contribui diretamente para a equidade no acesso à justiça, garantindo que questões técnicas complexas, como tratamentos e medicamentos não incorporados, sejam tratadas com o rigor necessário, sem sobrecarregar os litigantes com exigências probatórias desproporcionais.
Na quinta diretriz, observa-se a criação de uma “Plataforma Nacional”, que tem como objetivo a implementação de um sistema integrado entre os entes federativos e o Poder Judiciário. Essa iniciativa visa centralizar informações essenciais acerca das demandas administrativas e judiciais de acesso a medicamentos, promovendo uma otimização do fluxo de informações entre os diferentes entes envolvidos.
No que tange aos medicamentos incorporados, a sexta diretriz do acordo interfederativo estabelece um fluxo administrativo e judicial a ser seguido por todos os entes federativos.
O fluxo administrativo aprovado é baseado na portaria de vonsolidação 2, de 28/9/17, que organiza os medicamentos disponíveis no SUS em diferentes grupos, definindo as responsabilidades de custeio, aquisição e distribuição.
Dessa forma, cada grupo de medicamentos, que pode incluir o CEAF – Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, o CBAF – Componente Básico da Assistência Farmacêutica ou o CESAF – Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica, delimita claramente a responsabilidade dos entes federativos no fornecimento e financiamento, otimizando o acesso a medicamentos essenciais e assegurando um tratamento uniforme nas demandas judiciais.
A observância rigorosa dessas disposições é crucial para garantir a eficiência na prestação dos serviços de saúde, minimizando a possibilidade de litígios desnecessários e divergências entre as esferas de governo.
É possível constatar que a implementação da Súmula Vinculante 60 pelo STF representa um marco na organização do fornecimento de medicamentos pelo SUS, estabelecendo diretrizes que visam otimizar o fluxo administrativo e judicial.
Entretanto, é imperativo que a nova norma respeite a inafastabilidade da jurisdição, conforme previsto no art. 5º, XXXV da CF/88. Embora a intenção de reduzir a litigância no Judiciário seja compreensível, isso não deve criar obstáculos ao acesso à justiça para aqueles que dependem do SUS. Assim, qualquer acordo entre entes federativos deve ser um mecanismo que assegure o acesso equitativo à saúde, e não uma barreira que impeça a população de buscar seus direitos.
Neste contexto, o Judiciário deve desempenhar um papel fundamental como guardião dos direitos individuais, analisando as demandas por medicamentos com uma perspectiva que considere a realidade clínica dos pacientes.
A análise cuidadosa e individualizada é crucial, principalmente em casos de tratamentos oncológicos, nos quais a interrupção pode ter consequências graves.
Portanto, o sucesso da implementação da Súmula Vinculante 60 dependerá de um monitoramento contínuo que mantenha o foco na dignidade do paciente e na efetividade do direito à saúde no Brasil, promovendo um sistema de saúde mais justo e equitativo.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.
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Fonte: Portal Migalhas