A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomou nesta quarta-feira (23) a análise da controvérsia sobre a natureza da lista de procedimentos e eventos em saúde instituída pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – se taxativa ou exemplificativa, com a consequente definição sobre a possibilidade de os planos de saúde serem obrigados a cobrir procedimentos não incluídos na relação pela agência reguladora.

O julgamento teve início no dia 16 de setembro do ano passado, com voto do relator, ministro Luis Felipe Salomão, no sentido de que o rol da ANS tem caráter taxativo, mas admite exceções. Em voto-vista apresentado na retomada do julgamento, a ministra Nancy Andrighi abriu divergência e considerou que a lista possui natureza exemplificativa. A análise do caso voltou a ser suspensa após pedido de vista do ministro Villas Bôas Cueva.

De acordo com Nancy Andrighi, o rol de procedimentos da ANS constitui referência importante na organização do sistema de saúde privado, mas não pode restringir a cobertura assegurada na lei brasileira nem servir como imposição genérica quanto ao que deve ser coberto pelos planos – impedindo, em consequência, a definição individualizada do tratamento pelo médico e o aproveitamento, pelo beneficiário, de novas tecnologias na área de saúde.

“O rol de procedimentos e eventos em saúde constitui relevante garantia do consumidor para assegurar direito à saúde, enquanto importante instrumento de orientação quanto ao que lhe deve ser oferecido pelas operadoras de plano de saúde, mas não pode representar a delimitação taxativa da cobertura assistencial, alijando previamente o consumidor do direito de se beneficiar de todos os possíveis procedimentos ou eventos em saúde que se façam necessários para o seu tratamento”, apontou a ministra.

Promoção à saúde não pode se vincular ao lucro

Em seu voto, Nancy Andrighi citou precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que a atuação das agências reguladoras deve ser compatível com a Constituição e com os limites legais, de forma que a instituição que exerce atividade regulatória não pode substituir a lei na definição de direitos e obrigações. Nesse sentido, a magistrada apontou que as agências não têm a capacidade de inovar a ordem jurídica, especialmente para impor restrições aos direitos das pessoas.

Ainda segundo o STF, lembrou a magistrada, a promoção da saúde, mesmo na esfera privada, não se vincula às premissas de lucro, devendo levar em consideração a pessoa humana e a importância social dessa atividade.

Nancy Andrighi também ressaltou que, se a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998) estabelece que todas as moléstias indicadas na Classificação Internacional de Doenças (CID) estão incluídas no chamado plano-referência, só podem ser excluídos da cobertura dos planos os procedimentos e eventos relacionados a segmentos não contratados pelo consumidor e aqueles que o próprio legislador estabeleceu como de cobertura não obrigatória – por exemplo, tratamentos experimentais e estéticos.

“Infere-se que não cabe à ANS estabelecer outras hipóteses de exceção da cobertura obrigatória pelo plano-referência, além daquelas expressamente previstas nos incisos do artigo 10 da Lei 9.656/1998, assim como não lhe cabe reduzir a amplitude da cobertura, excluindo procedimentos ou eventos necessários ao pleno tratamento das doenças listadas na CID, ressalvadas, nos termos da lei, as limitações impostas pela segmentação contratada”, resumiu.

Lista tem mais de 3 mil procedimentos e traz linguagem técnica

Ao fundamentar sua posição divergente, a ministra Nancy Andrighi também enfatizou a vulnerabilidade do consumidor em relação às operadoras dos planos e o caráter técnico-científico da linguagem utilizada pela ANS na elaboração do rol de procedimentos obrigatórios – condições que, para ela, impedem a pessoa de analisar com clareza, no momento da contratação do plano, todos os riscos a que está submetida e todas as opções de tratamento que terá à disposição, inclusive para doenças que ela nem sabe se terá.

“Não é razoável impor ao consumidor que, no ato da contratação, avalie os quase 3 mil procedimentos elencados no Anexo I da Resolução ANS 465/2021, a fim de decidir, no momento da contratação, sobre as possíveis alternativas de tratamento para as eventuais enfermidades que possam vir a acometê-lo”, disse.

Em relação aos potenciais efeitos financeiros para o setor no caso do reconhecimento do caráter exemplificativo do rol da ANS, Nancy Andrighi destacou que a legislação permite que a própria autarquia autorize eventual reajuste no valor das mensalidades, de acordo com fatos como o aumento da sinistralidade. Ela também apresentou dados segundo os quais as operadoras têm obtido lucros que ultrapassam a casa dos bilhões, todo ano.

Para o relator, taxatividade protege os beneficiários e garante o sistema

Após o voto divergente, o ministro Luis Felipe Salomão reforçou sua posição no sentido de que a taxatividade do rol da ANS é fundamental para o funcionamento adequado do sistema de saúde suplementar, garantindo proteção, inclusive, para os beneficiários – os quais poderiam ser prejudicados caso os planos tivessem de arcar indiscriminadamente com ordens judiciais para a cobertura de procedimentos fora da lista da autarquia.

Apesar desse entendimento, Salomão salientou que, em diversas situações, é possível ao Judiciário determinar que o plano garanta ao beneficiário a cobertura de procedimento não previsto pela agência reguladora, a depender de critérios técnicos e da demonstração da necessidade e da pertinência do tratamento.

Esses critérios, segundo o magistrado, foram atendidos em um dos casos analisados pela seção, no qual o paciente, com quadro de esquizofrenia e depressão, teve prescrito tratamento com eficácia reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina.

No aditamento de seu voto, o ministro apontou, ainda, que em nenhum outro país do mundo há lista aberta de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória pelos planos privados. Salomão também lembrou que a lista da ANS é elaborada com base em profundo estudo técnico, sendo vedado ao Judiciário, de forma discricionária, substituir a administração no exercício de sua função regulatória.

Ele esclareceu, por fim, que a questão relacionada ao tratamento de pessoas com autismo não está sendo abordada, pois “há julgamento em curso sobre o tema e questão de ordem suscitada no sentido de que tais tratamentos já foram incluídos no rol de procedimentos da ANS, com consultas e terapias ilimitadas”.

O julgamento será retomado com a apresentação de voto-vista pelo ministro Villas Bôas Cueva, ainda sem data definida.

Fonte: Superior Tribunal de Justiça