Nesta quinta-feira, 19, o STF voltou a julgar, em sessão plenária, se testemunhas de Jeová podem recusar transfusão de sangue no SUS (RE 1.212.272) e se a União deve custear procedimentos alternativos à transfusão de sangue no sistema público de saúde (RE 979.742).

Em agosto, ocorreram as sustentações orais das partes envolvidas e as manifestações dos amici curiae. Na sessão desta tarde, ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Flávio Dino, Cristiano Zanin e André Mendonça votaram favoravelmente às demandas das testemunhas de Jeová.

Devido ao adiantado da hora, o julgamento foi suspenso e será retomado na próxima quarta-feira, 25.

Recusa à transfusão

O RE 1.212.272 envolve mulher testemunha de Jeová que, devido a uma doença cardíaca, foi encaminhada para a Santa Casa de Misericórdia em Maceió/AL para uma cirurgia de substituição de válvula aórtica.Por motivos religiosos, ela recusou a transfusão de sangue, assinando um termo de consentimento sobre os riscos, mas negou a autorização prévia para transfusão, resultando no cancelamento da cirurgia.

A Justiça de Maceió manteve a decisão de que a cirurgia não poderia ocorrer sem a possibilidade de transfusão devido aos riscos.

A paciente recorreu, argumentando que a exigência de consentimento violava sua dignidade e direito à saúde, alegando que cabe a ela decidir sobre os riscos do tratamento.

Tratamento diferenciado

No caso do RE 979.742, a União recorre contra a decisão que a condenou, junto ao Estado do Amazonas e o município de Manaus, a custear uma cirurgia de artroplastia total em outro Estado para um paciente, já que o procedimento sem transfusão de sangue não está disponível no Amazonas.

A Procuradoria-Geral da República sugeriu que o Estado deve cobrir os custos de tratamentos que respeitem a liberdade religiosa, desde que esses tratamentos alternativos estejam disponíveis no sistema público de saúde.

Dignidade humana e liberdade religiosa

Nesta tarde, ao proferir voto, ministro Luís Roberto Barroso, relator do RE 979.742, destacou a importância da liberdade religiosa e da autonomia individual, considerando esses direitos fundamentais no ordenamento jurídico. Para S. Exa., a dignidade da pessoa humana abrange o valor intrínseco de cada indivíduo, a autonomia para realizar escolhas e o equilíbrio entre essa autonomia e os limites que a sociedade pode impor.

No contexto da recusa de transfusão de sangue por membros das testemunhas de Jeová, Barroso enfatizou que a liberdade religiosa inclui crença, culto, proselitismo e a laicidade do Estado, sem preferência por nenhuma religião.

Ressaltou que a recusa é legítima, especialmente diante dos avanços da medicina que permitem alternativas ao procedimento. No entanto, Barroso sublinhou que essa recusa deve atender a critérios rigorosos: o paciente precisa ser maior de idade, capaz, discernido, e sua decisão deve ser expressa, livre, inequívoca, e informada previamente.

A recusa, conforme destacou o ministro, deve ser pessoal, não podendo ser estendida a terceiros ou a menores.

Barroso também lembrou que o direito à recusa consta de documentos internacionais, como a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, e a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde no Brasil, que reforçam a necessidade de consentimento livre e esclarecido para qualquer intervenção médica.

Além disso, o ministro abordou o conceito de “adaptação razoável”, aplicado normalmente a pessoas com deficiência, mas que pode ser estendido a outras situações envolvendo direitos fundamentais. Barroso afirmou que, caso o paciente não tenha condições financeiras de custear tratamentos alternativos, o Estado tem o dever de prover esse acesso, desde que não represente um ônus desproporcional.

Por fim, Barroso fez referência à OMS – Organização Mundial da Saúde, que recomenda o uso de tratamentos alternativos à transfusão, bem como à jurisprudência de cortes internacionais, que legitimam o direito de recusa em precedentes envolvendo Testemunhas de Jeová em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Itália e Colômbia.

Concluindo, o ministro afirmou que a Justiça do Amazonas agiu corretamente ao assegurar o direito do paciente, refletindo o respeito aos direitos fundamentais e à liberdade religiosa, mesmo em tema de delicada natureza moral.

Assim, quanto ao caso concreto, votou por negar provimento ao RE da União, para manter a decisão do TJ/AM, e propôs as seguintes teses:

“1. Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, tem o direito de recusar o procedimento médico que envolva transfusão de sangue com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.

2. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no SUS. Podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio.”

Alternativas são essenciais

Ministro Gilmar Mendes, relator do RE 1.212.272, destacou a importância de alternativas à transfusão de sangue, citando recomendações da OMS que visam aumentar a segurança dos pacientes, já que as transfusões envolvem riscos de contaminação.

Afirmou, também, que durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19, as doações de sangue sofreram uma queda de 15 a 20%, o que aumentou a preocupação sobre a dependência de bancos de sangue. Nesse contexto, o ministro ressaltou a importância do método PBM, abordagem que foca nas necessidades específicas de cada indivíduo e oferece uma alternativa à transfusão de sangue.

Além disso, Gilmar Mendes sublinhou a autonomia dos pacientes em relação aos tratamentos médicos, enfatizando o direito à decisão informada. Lembrou que, no Brasil, a releitura da relação médico-paciente passa pela CF, que consagra os princípios da dignidade da pessoa humana, privacidade e intimidade, permitindo a extração do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação.

O ministro também fez referência à jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, que reconhece que a liberdade de aceitar ou recusar tratamentos médicos específicos é fundamental para a autodeterminação e autonomia da pessoa.

Segundo o decano da Corte, o Estado deve adotar uma postura de abstenção e neutralidade, sem interferir nas crenças e dogmas dos indivíduos ao definir o que é certo ou errado, bom ou ruim, crível ou inconcebível.

Ao final, propôs as seguintes teses de julgamento:

“1. É permitido ao paciente no gozo pleno da sua capacidade civil recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde por razões religiosas é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade.

2. É possível a realização de procedimento médico disponibilizado a todos pelo SUS, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico científica de sucesso, anuência da equipe médica com sua realização e decisão inequívoca livre e informada e esclarecida do paciente.”

Laicidade

Ao votar, ministro Flávio Dino destacou a relevância do princípio da laicidade, afirmando que este conceito, com raízes multisseculares, permite a convivência harmoniosa entre pessoas de diferentes crenças religiosas.

Dino ressaltou que a laicidade não é contrária a Deus, mas um princípio fundamental para proteger a liberdade religiosa.

Segundo o ministro, retrocessos institucionais ocorrem quando visões teocráticas são impostas por instituições jurídicas ou no discurso político, o que fere o Estado laico, o qual, em sua visão, é essencial para a própria existência da liberdade religiosa.

Também chamou a atenção para a necessidade de incluir, na ementa ou na tese do julgamento, ressalva em relação às crianças e adolescentes, para poderem, se necessário, ser submetidos a transfusões, a fim de evitar conflitos com o art. 227 da CF, que garante a proteção integral dos menores de idade.

Ademais, Dino defendeu a inclusão do esclarecimento de que, embora o médico não possa impor tratamentos ao paciente, poderá, dentro de sua liberdade profissional, recusar-se a administrar tratamentos alternativos. Segundo o ministro, a prerrogativa é importante para evitar imputações de infrações éticas ou sanções penais aos médicos.

Menores e incapacidade momentânea

Ao proferir voto, ministro Cristiano Zanin seguiu os relatores e enfatizou que, no que diz respeito a crianças, a representação pelos pais não implica que estes sejam os detentores dos direitos fundamentais dos filhos.

Destacou que, em casos que envolvam a proteção à saúde e à vida, a liberdade parental é limitada, sendo impossível substituir a vontade do menor pelos pais. Nesses casos, o critério médico deve prevalecer, considerando o melhor interesse da criança, especialmente quando for a única alternativa para salvar sua vida.

Em situações de incapacidades momentâneas, como pacientes inconscientes, Zanin defendeu que o melhor interesse deve ser um critério secundário. A preferência deve ser dada à vontade previamente manifestada pelo paciente em diretivas antecipadas de vontade, que devem ser respeitadas, inclusive em casos de recusa expressa a determinados tratamentos.

Zanin acompanhou o entendimento do ministro Flávio Dino quanto à liberdade do médico de recusar a realização de tratamentos, reafirmando a importância da autonomia médica e do respeito às escolhas antecipadas dos pacientes.

Fonte: Portal Migalhas