Ressignificar. Quando o assunto está relacionado a uma doença grave, que pode colocar em risco a vida, quantas vezes a gente não lê essa palavra? Dar um novo sentido a algo que nos tira a sensação de controle, na maioria das vezes, é muito difícil. Ainda mais quando envolve uma criança. Mas, de forma unânime, as famílias que passaram por situações difíceis, encontraram nos cuidados paliativos a resposta para toda a dor: aquela que diz que o amor transforma tudo.
“Eu sempre disse que os cuidados paliativos do Hospital Evangélico Mackenzie salvaram tanto a minha vida, quanto a vida da minha esposa e fez com que a gente tivesse força para ter nossa filha Ágatha”.
Assim resume Alexandre Brandini Celli, de 37 anos. Ele e a esposa, Angelita Pires da Silva Celli, de 41, sequer imaginavam que “cuidados paliativos” se tratavam mais sobre vida do que morte. E descobriram quando se viram à beira de um abismo.
Em 2020, o casal descobriu que teria um filho, mas no primeiro exame morfológico veio a informação de que o menino poderia ter síndrome de Down. Como se não bastasse, outros exames confirmaram que ele teria uma síndrome chamada síndrome de Patau, que é a trissomia do cromossomo 13.
“Duas doutoras resolveram ligar para a gente e falaram, ‘olha, a gente está criando um programa novo e vocês vão ser um dos primeiros pacientes se quiserem participar desse programa’. Foi quando a gente encontrou a doutora Larissa e a doutora Andréia, que estavam criando os cuidados paliativos. Elas explicaram tudo o que meu filho tinha de problema, e minha esposa caiu em si pela primeira vez”.
Alexandre e a esposa, que já tinham passado por alguns médicos, pela primeira vez se viram acolhidos. O abismo ficava para trás.
“Pela primeira vez, chegaram para a gente e perguntaram ‘o que a gente pode fazer pra ajudar vocês?’, porque até então era sempre o bebê e os pais sempre deixados de lado. Nosso psicológico estava muito abalado, a gente chorava praticamente todos os dias e pela primeira vez a gente se sentiu acarinhado e protegido”.
Por conta do problema encontrado no exame, o casal conseguiu na Justiça autorização para antecipar o parto. Os dois optaram por trazer Heitor à vida no Hospital Evangélico Mackenzie, em Curitiba, e Alexandre disse que “foi uma das coisas mais lindas que já presenciou”. As 12 horas intensas de trabalho de parto que Angelita passou, ficaram mais leves.
“Foi super doloroso, porque como ela estava com o útero fechado ainda, ela precisou induzir o parto, então precisou fazer com que o corpo dela ficasse tudo certinho para o nascimento do Heitor. Quando rompeu a bolsa, todas os médicos que já tinham passado pela gente pelos cuidados paliativos, estavam dentro da sala de parto, com uma música maravilhosa que eles colocaram. A gente tinha pelo menos 15 médicos dentro da sala de parto. E a gente foi abraçado, sabe? Eu lembro de tudo e é como se tivesse uma luz dentro, como se tivesse Deus mesmo dentro junto com a gente”.
Heitor nasceu com o problema que já era esperado. Mas viveu tempo suficiente para que os pais conseguissem agradecê-lo por ter vindo.
“Eu vi ele se aconchegando no colo da minha esposa. O Heitor sempre foi uma bênção para a gente, e ele foi abençoado até o último momento, porque ele nasceu e cinco minutos depois ele faleceu. Ele veio para o mundo e cumpriu o papel dele. E foi da maneira mais linda, assim, no colo da minha esposa. A gente conseguiu sentir o calorzinho, escutar o batimento dele, então ele cumpriu o papelzinho dele e foi ficar com Deus. A gente teve todo o suporte nesse momento e eles ficaram cuidando da minha esposa durante todo esse processo”.
Atualmente, o casal já tem uma filha de quase dois anos, a Ágatha, que está bem e tem os cuidados de uma das médicas que também cuidou de Heitor. Mas Alexandre tem consciência de que os cuidados paliativos os fizeram ter forças para lutar. Não só por Heitor e pela Ágatha. Mas por eles mesmos.
“O programa deles é um negócio que deveria ser anunciado pro universo, sabe? Porque eles salvam vidas. A gente escuta pessoas que não tiveram esse acompanhamento, que se perdem psicologicamente e chegam a tirar a própria vida. Além de eles darem esperança, amor, carinho, dão uma vida pra gente. Porque sem isso, eu acho que a gente tinha pirado”.
Alexandre comentou que teve que ser forte, pois sabia que a esposa já estava fragilizada. Mas também tem a certeza de que se não fossem os cuidados paliativos, não teria conseguido.
“Eu estava devastado, eu estava destruído. E pela primeira vez, eu tive a mão das duas no meu ombro, para segurar mesmo. Eu digo que eu só aguentei o que aguentei, porque eu tinha essas doutoras do meu lado. É por isso que eu consigo falar com serenidade: a minha vida, elas salvaram”.
A força de mãe e filha
Na época da pandemia, muitas vidas se foram por conta da Covid-19. Esse quase foi o caso de Alcione Sudul. Com covid enquanto estava grávida, ela teve que antecipar o parto, ficou 67 dias internada e depois viu a filha na mesma situação. As duas correram risco de morte e se conheceram alguns meses depois. Mas se recuperaram.
“Quando a Manuela fez um ano, a gente descobriu o câncer. Ela estava quase andando e parou, não sentava, não engatinhava, não ficava mais em pezinho. Fomos investigar o que estava acontecendo, passamos por vários hospitais, médicos particulares, e ninguém achava o que ela tinha. Até que conseguimos encontrar no Evangélico. Ela internou para investigar, acabou pegando covid junto. Foi quando o caso se agravou um pouco mais, foi para a UTI, acabou ficando mais de um mês, foi entubada, também usou traqueo. Ali a gente descobriu o tumor, o neuroblastoma, que estava na coluna e atingiu as pernas dela. Ali começou nossa batalha, foi bem difícil”.
Os cuidados paliativos entraram ainda na UTI, no momento em que os médicos descobriram o tumor de Manuela. Foi aí que a mãe entendeu que o objetivo não era “esperar pela morte”, mas sim “preparar para a vida”.
“Quiseram entender o que eu estava sentindo, quais eram meus medos, me acolheram, foi aí que o paliativo entrou. Foi de extrema importância, me explicaram o que estava acontecendo. Quando me disseram que ela iria precisar da traqueo, mexeu muito comigo, porque eu usei, eu sabia como era e me desesperei. Foi importante porque eles me deram todo o suporte, para a minha família também, de apoiar, de explicar, e não desistir que iria dar certo, que ela iria melhorar, sempre colocando a família pra cima”.
Após todo o tratamento, Manuela está bem. Ainda continua com acompanhamento pela equipe do Hospital Evangélico Mackenzie, com uma rotina bem puxada de fisioterapia, mas a mãe comemora que “ela está ótima, está reagindo super bem, maravilhosa, tirou a traqueo, fala bem, canta, dança, brinca, quer ir pra escola”.
Alcione disse que nunca tinha ouvido falar de cuidados paliativos. Mas entendeu imediatamente que era um sopro de esperança não só para Manuela, mas para a família.
“Quando a gente está fora do hospital, a gente sabe que tem crianças com várias doenças, que sofrem. Mas quando você entra e vê as crianças sofrendo com doenças às vezes mais graves que a sua, ver mãe perdendo filhos. Eu não sabia do paliativo, não tinha conhecimento, fui conhecer depois que eu entrei lá dentro. E daí eu vi a extrema importância que tem”.
A mãe de Manuela aprendeu não só a ter esperança e a entender que nem tudo é sobre esperar o pior.
“Tem que ter sempre gratidão e fé. Fé foi uma das principais que eu tive comigo, com a minha família, pensamentos positivos. Foi sofrido, foi muito sofrido. Eu acho que para uma mãe ver seu filho sofrendo ali, é muito difícil. A luzinha lá no fim, a gente às vezes olha, está tão distante, mas a gente vai chegar lá. Sempre agradecer, mesmo nos momentos difíceis, porque Deus sabe o que está fazendo e ele faz sempre o melhor. O cuidado paliativo foi de extrema importância para entender tudo isso”.
Desmistificando e quebrando tabus
Sempre que ouvimos falar sobre “cuidados paliativos”, automaticamente entendemos que estamos falando de algo ruim, a sensação é de morte. Mas, para os médicos que se dedicam a tornar a vida das pessoas melhor, a interpretação deveria ser o contrário.
“Ainda existe um grande estigma dos cuidados paliativos dentro da sociedade brasileira. Não apenas pelas pessoas que não são da área da saúde, inclusive por profissionais da saúde também. Um dos grandes motivos para isso, primeiramente, é a negação da morte que a nossa sociedade tem. A morte ainda é um tabu. A morte é um assunto que não é discutido dentro das famílias, é um assunto proibido. Isso é uma coisa que acaba atrapalhando bastante a entrada dos cuidados paliativos na vida da pessoa adoecida”, comenta Jonathan Vinícius Lourenço, médico e professor da Faculdade Evangélica Mackenzie (Fempar).
Jonathan acredita que o nome “paliativo” para o brasileiro seja visto como “gambiarra”, algo a ser feito quando não há mais jeito. Mas falar de cuidados paliativos não é falar sobre o “fim da linha”.
“Mas a palavra paliativo tem uma origem muito bonita, porque ela vem do verbo palliare, do latim, que significa cuidar, amparar, proteger, abrigar. Então, o cuidado paliativo seria um cuidado que ampara, um cuidado que abriga, um cuidado que protege. Por isso falamos que cuidado paliativo é sobre vida e vida com qualidade. A morte também faz parte dos cuidados paliativos, mas faz parte da vida. É um ciclo natural, mas a gente não cuida só de quem está morrendo”.
A médica Andrea Franco, que também atua no Hospital Evangélico Mackenzie, reforça que cuidado paliativo é indicado para qualquer pessoa com alguma condição que ameace ou limite a vida, independente da idade, muito embora esteja associado a pessoas idosas.
“E não importa se esse paciente tem uma doença incurável, se é uma doença potencialmente curável, se é uma doença aguda, crônica. Se existe um sofrimento diante de um tratamento de alguma condição de saúde, a gente precisa de uma equipe de cuidado paliativo para conseguir dar o suporte, para melhorar a qualidade de vida desse paciente. Melhorando a qualidade de vida do paciente, a gente consegue melhorar a resposta do paciente diante das terapias”.
O que faz o cuidado paliativo?
Envolvendo uma equipe multidisciplinar, os cuidados paliativos servem para ir além dos cuidados médicos. Isso porque, como explica Andrea, é impossível olhar para o paciente como um todo, se o médico estiver sozinho.
“Muitas vezes o médico está focado realmente na doença. Então a gente tem que lidar com toda uma equipe multidisciplinar. A gente precisa do psicólogo, a gente precisa do capelão, que é quem cuida da parte espiritual. A gente tem o pedagogo, que vai olhar para a parte educacional dessa criança. A gente precisa do fisioterapeuta para melhorar a parte motora do nosso paciente, o fonoaudiólogo para melhorar a fala, para melhorar a parte de deglutição do paciente, que pode ser alterado durante um processo de tratamento de doença. A nutrição, como é importante a gente ter um paciente bem nutrido para ele poder ser a melhor resposta. Envolve todo um serviço multidisciplinar, o serviço social, o dentista”.
São vários profissionais envolvidos nesse cuidado, que varia de acordo com cada fase do tratamento, demandando mais ou menos de cada profissional. Todos trabalhando sempre juntos.
No caso da pediatria, grande parte dos casos são de crianças com potencial de cura. A ideia é ampliar a visão do tratamento não só para a parte da doença, mas para toda essa parte psicossocial e espiritual.
“E quando a gente consegue dar esse acolhimento, a gente consegue trazer ferramentas para essa criança e essas famílias lidarem com essa situação tão imprevisível e tão delicada. Com isso, dando essas ferramentas, a gente consegue empoderar essas famílias a lutarem realmente de frente. A gente consegue dar força. Quando a gente trabalha realmente com a verdade e com esse amor que tem envolvido nesse cuidado, a gente consegue melhorar o enfrentamento dessas crianças e dessas famílias diante dessa condição”.
Inserido no ambiente universitário, por ser professor, o médico Jonathan Vinícius Lourenço comenta a importância de os cuidados paliativos também seguirem esse caminho e estarem presentes nas novas formações. Por isso, desde 2023, todas as escolas de medicina do Brasil já são obrigadas a oferecer, durante a graduação, uma disciplina de cuidados paliativos.
“As universidades estão se ajeitando nos seus currículos, a fim de que todos os seus alunos tenham um conhecimento básico em cuidados paliativos, visto que o médico é um especialista que vai lidar com doenças que ameaçam a vida. Em muitos lugares onde os médicos vão trabalhar, pode ser que não exista uma equipe especializada em cuidados paliativos. E esse médico precisa estar apto a acolher a família, a acolher o paciente, a controlar os principais sintomas que trazem sofrimento”.
Ressignificar é possível?
Ressignificar foi a palavra que compôs as histórias compartilhadas. Conversando com as pessoas que nos ajudaram a construir a reportagem, descobrimos que, sim, é possível ressignificar um momento difícil, se houver amor e esperança.
No caso de Eliane da Silva Cagé, empresária de Curitiba, após perder dois filhos, o último deles em 2020, ela encontrou a força que precisava para dar um novo sentido à dor que enfrentou: acolhendo outras mães.
“O dia que eu recebi o diagnóstico, de que o caso do Davi era incompatível com a vida, foi por acaso. Fui ver se estava tudo bem com ele, e recebi esse diagnóstico. Foi muito difícil para mim, um pesadelo. Passei por psicóloga, e até eu chegar nos cuidados paliativos, que foi no início de dezembro, eu fiquei sabendo que o projeto também era recente”.
O projeto do Hospital Evangélico Mackenzie foi fundamental para Eliane não só a enfrentar a maior dor que estava passando, mas também a buscar um novo sentido que esse momento teria no futuro.
“Ali eles me explicaram tudo que ia ser feito, tudo que ia acontecer. Porque eu tinha muita insegurança. Eu não sabia o que iria acontecer, se eu teria que parar de trabalhar, para cuidar dele, se ele seria uma criança especial, se eu prepararia o enxoval dele ou não. Se eu me apegaria a ele ou não. Passaram muitas, muitas dúvidas na minha cabeça. Como que eu iria me preparar para esse momento, se seria talvez de vida, de morte”.
No decorrer da situação, os cuidados dos paliativos ajudaram Eliane e o marido a entenderem tudo que estava acontecendo. “Foi como se a gente tirasse um grande peso das nossas costas. A gente recebeu um carinho, um amor, uma atenção”. Davi nasceu e foi muito amado.
“Davizinho nasceu e ficou uma hora e pouco em vida. O nosso momento foi muito respeitado. A gente teve o nosso momento de conhecer ele, de se despedir dele. A gente não recebeu esse cuidado na perda anterior, que foi do Nicolas, em 2013. Ninguém perguntou pra gente se gostaríamos de ter esse momento, sabe? Então eu sinto que do Davi a gente fechou um ciclo, a gente viveu todas as etapas”.
Enquanto ainda estava lidando com a situação, Eliane descobriu um projeto de “caixas da memória”. Quando estava fazendo praticamente um ano da perda do Davi, ela sentiu latente que deveria botar a mão na massa.
“Na época da pandemia, eu comecei a trabalhar com caixas de MDF para vender, para ter uma renda extra. Creio que Deus ali já tinha um propósito. Entrei em contato com a doutora Andrea, expus minha ideia das caixas, ela super apoiou. E quando estava praticamente fazendo um ano da perda do Davi, eu estava produzindo essas caixinhas. As primeiras caixas que eu produzi, foi um momento inexplicável, de dor, mas também de felicidade de poder estar contribuindo de alguma maneira. Foi uma mistura de sentimentos ali”.
Segundo Eliane, cada caixinha leva dois ursinhos: um a mãe pode ficar com ela e o outro, se desejar, pode colocar no caixãozinho da criança. Também acompanha um saquinho com cheirinho de bebê. Um papel em branco, e uma cartinha de Eliane para a mãe.
“O papel em branco é para ela escrever uma carta para o bebê. Isso ajuda muito, pois ela pode falar tudo que ela quer falar, tudo que ela sentia, os sonhos que ela planejou, tudo que ela gostaria de falar para o bebê dela. É uma realização pessoal muito grande. Eu sinto muito amor, muita empatia pelas mães. É algo muito especial, pretendo continuar isso até quando Deus permitir”.
Para Eliane, os cuidados paliativos transformaram a vida dela e do marido. Sem isso, o abismo estaria muito mais perto.
“Fundamental. Eu acho que todos os hospitais deveriam ter. Inclusive os cuidados paliativos deveriam iniciar ali logo após a ecografia, porque o que me marcou muito foi quando eu recebi o diagnóstico. No meu caso, eu estava sozinha, recebi o diagnóstico. Acredito que os cuidados paliativos deveriam estar ali para oferecer o amparo. O que eu recebi depois, dos cuidados paliativos, foi incrível. Foi algo extraordinário, não foi me dado esperança, mas foi me colocado um travesseiro na minha queda, entende? Isso pra mim foi muito importante, porque eu fui preparada para o que iria acontecer”.
Fonte: Portal Banda B
Fonte: Francielly Azevedo e Lucas Sarzi - Portal Banda B