Saúde e educação são as duas principais políticas públicas do país. São elas que podem produzir um mínimo de igualdade num país tão desigual. Prover saúde pública de qualidade significa garantir e respeitar a dignidade de cada cidadão que integra e constrói a sociedade brasileira. Não por acaso são duas políticas públicas que têm regras de financiamento mínimo na Constituição Federal.
Muito se tem discutido sobre a melhor forma de gerir a saúde pública no país. Os valores gastos, como proporção do PIB, são elevados, muito embora em valores inferiores aos de países desenvolvidos quando se considera o gasto per capita. Por isso, o subfinanciamento da saúde tem sido apontado recorrentemente como uma das principais causas da precariedade dos serviços públicos de saúde.
De fato, é preciso construir e equipar mais hospitais, contratar profissionais e provê-los de materiais e medicamentos suficientes. Há muitas regiões brasileiras com imenso déficit em equipamentos hospitalares.
Nossa grave crise fiscal, no entanto, constitui um sério obstáculo a que se possa destinar mais recursos para a saúde sem que haja uma retomada do crescimento econômico e, por consequência, da arrecadação.
Mesmo escassos para o tamanho da população, os recursos da saúde são volumosos. Nesse contexto, geri-los bem ganha ainda mais importância. Se é importante gerir bem sempre, na escassez é que a qualidade da gestão pode fazer toda a diferença.
Está em voga apontar a gestão como causa principal da precariedade da saúde pública em todo o país. Alega-se que a saúde privada estaria muito melhor em razão da agilidade e simplicidade da gestão privada, que permite contratar e demitir profissionais com relativa flexibilidade e facilidade e fazer compras de insumos e contratações de serviços com agilidade. A solução para a saúde pública seria então muito simples, bastaria importar para a saúde pública essas características da saúde privada.
Com esse raciocínio, tão sedutor quanto enganoso e oportunista, governadores têm adotado a estratégia de terceirizar a saúde pública por meio de organizações sociais e outras formas jurídicas. Entregam a gestão de unidades hospitalares inteiras a pessoas jurídicas privadas como se a mera mudança de regime jurídico pudesse melhorar a saúde magicamente. Fica o poder público nesses casos como mero financiador do modelo, como tomador de serviços.
O diagnóstico de que há problemas na gestão está correto. O tratamento é que está equivocado. Qualquer instituição, pública ou privada, precisa ser bem gerida, e gerir bem é sempre mais difícil que gerir mal. A simples troca de regime jurídico de público para privado não garante nenhuma melhoria na gestão da saúde e abre as portas para todo tipo de desvio de condutas que o direito público tanto lutou para eliminar da administração pública: nepotismo, corrupção, favorecimento pessoal.
Será que esse seria um preço necessário para a boa gestão na saúde? Será que as regras de impessoalidade da administração pública são incompatíveis com a saúde? Certamente não.
A experiência tem mostrado como esse “novo modelo” não resolve os problemas da saúde por várias razões. A primeira é o custo. As unidades terceirizadas que alegadamente apresentam resultados melhores recebem em média três vezes mais recursos do que recebiam antes da terceirização. Com mais recursos disponíveis, é evidente que fica mais fácil gerir qualquer coisa, o que deixa entrever que a melhoria de performance se deve muito mais à elevação dos recursos que à mudança do modelo de gestão. O problema, com isso, é que a solução tomada como modelo não é replicável para toda a rede por falta de recursos. Seria necessário triplicar os orçamentos da saúde para que uma rede estadual inteira pudesse passar a funcionar.
A segunda razão é a falta de transparência. Via de regra, não há auditorias sobre a quantidade de atendimentos e procedimentos realizados nas unidades terceirizadas e quando estas ocorrem, verifica-se que as metas pactuadas muitas vezes não são atingidas. Em Goiás, na semana passada, os jornais noticiavam que apenas uma unidade terceirizada havia atingido as metas pactuadas. Há ainda notícias de que essas unidades terceirizadas escolhem pacientes, preferindo aqueles de menor gravidade, para produzirem estatísticas mais favoráveis. Assim, pacientes mais graves, com muitos dias de internação e prognóstico ruim são recusados e destinados a unidades não terceirizadas, mostrando a pior face desse modelo.
Organizações sociais têm sido criadas só para assumir unidades hospitalares, mesmo sem nenhuma experiência anterior na área, como se gerir hospitais fosse tarefa trivial. Como não podem obter lucros, distribuem “resultados” mediante remunerações elevadíssimas para seus dirigentes ou por meio da contratação de empresas prestadoras de serviços. É como se fosse uma empresa privada, mas sem nenhum risco, já que a receita está garantida.
Também a União comprou ilusão semelhante ao criar a EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), destinada inicialmente a assumir a gestão dos hospitais universitários que as universidades deliberassem entregar. Os argumentos eram os mesmos. Organizada em forma de empresa pública, a EBSERH teria mais agilidade e flexibilidade para gerir pessoal e efetuar compras. Não há notícia de nenhuma revolução na gestão dos hospitais universitários conduzidos pela EBSERH.
Recentemente, no TCU, deparei-me com um caso que ilustra muito bem como a boa gestão na saúde pública é decisiva e plenamente possível mesmo no ambiente da gestão pública. No caso, examinava-se a gestão do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, integrante da estrutura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que deliberou não abdicar de sua autonomia na gestão de seu complexo hospitalar.
Trata-se de um hospital geral, de grande porte, de alta complexidade, com mais de 70 especialidades numa cidade especialmente carente de bons hospitais públicos. Ao assumir a direção do hospital por eleição de professores, funcionários e alunos, o professor de oncologia Eduardo Côrtes encontrou uma unidade com 200 leitos em que praticamente 100% das compras eram feitas sem licitação, de forma emergencial, conforme o próprio TCU atestara em auditoria anterior à sua gestão. De outro lado, o pronto-socorro funcionava apenas de segunda a sexta-feira, em horário comercial, com evidente prejuízo para a comunidade e para o processo ensino-aprendizagem dos novos profissionais da saúde no Rio de Janeiro.
A tarefa do diretor era difícil, equivalia a trocar pneus de uma carreta em movimento. A primeira providência foi estruturar o setor de compras, com alocação da mão de obra administrativa suficiente e treinamento intensivo. A equipe de compras nem sequer tinha experiência em fazer pregões e outras modalidades de licitação, pois estava sempre muito atarefada fazendo compras emergenciais.
O segundo passo foi determinar que a cada pedido de compra emergencial de material fosse simultaneamente disparado um procedimento de licitação para compra daquele material dimensionada para atender o hospital por pelo menos um ano. Além disso, aquela compra emergencial deveria atender o hospital pelo prazo necessário à conclusão da licitação, de modo que aqueles itens não voltassem a ser comprados novamente de forma emergencial. Com isso, paulatinamente, todas as compras passariam a ser por meio de regulares licitações.
Houve também um trabalho de convencimento de seus colegas médicos no sentido da necessidade de correta e adequada especificação de materiais para que pudessem ser licitados, e não adquiridos por compra direta no momento de uma cirurgia, como era a praxe. Os cirurgiões ajudaram as equipes de compra a fazer as especificações corretas.
Os resultados foram excelentes. Os custos de aquisição caíram em média 40%. Com a economia, pequenas reformas foram feitas com custo abaixo do orçamento previsto. Com isso a direção conseguiu ampliar o número de leitos de 200 para 240 e manter o pronto-socorro aberto 24h por dia, todos os dias do ano. Até a EBSERH fez algumas compras aderindo aos resultados de atas de preço desse importante hospital universitário.
A gestão do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho no período 2014-2017 é um verdadeiro exemplo de como as regras que orientam a administração pública não só não atrapalham como potencializam os resultados positivos quando a gestão é benfeita, orientada para atender bem o paciente e ainda, no caso, formar bem os novos profissionais de saúde. Trata-se de um case que deveria ser melhor estudado e replicado em todos os hospitais públicos do país.
Em conclusão, é preciso entender que qualidade de gestão na saúde não é sinônimo de regime jurídico e que, mesmo na seara privada, gerir bem é sempre desafiador, tanto assim que não se veem hospitais de excelência sendo criados a todo momento. A saúde pública precisa, sim, de boa gestão, mas não será entregando-a a aventureiros ou abrindo mão da impessoalidade e da transparência na gestão que ela ocorrerá.
Júlio Marcelo de Oliveira é procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União.
Fonte: Revista Consultor Jurídico (Conjur)