João Pedro Accioly

Renato Alencar Porto

A coluna desta semana aborda a relação entre o Congresso e as agências reguladoras. Discute-se, em especial, a possibilidade de reversão, pelo Parlamento, de decisões adotadas por Agências.

Buscando novamente fornecer opiniões alternativas, o Reg. publica hoje artigos assinados por João Pedro Accioly (membro do UERJ Reg.) e por Renato Porto (Diretor da Anvisa).

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Pode o Congresso se substituir às Agências?

Por João Pedro Accioly

O Congresso Nacional e as Agências Reguladoras têm travado uma relação conturbada, com atritos constantes e sem contornos definidos. Os conflitos institucionais em torno da fosfoetanolamina, da cobrança por bagagem aérea despachada e, mais recentemente, dos remédios para emagrecer (anorexígenos) colocam uma questão fundamental: o parlamento pode editar leis para superar decisões específicas de agências reguladoras?

Ao apreciar cautelar na ADI nº 5501, no ano passado, Luís Roberto Barroso entendeu que não. Para ele, a liberação da chamada pílula do câncer configurou “violação à reserva de administração, que decorre do princípio da separação de Poderes”. Na visão do Ministro, “o Poder Legislativo substituiu o juízo essencialmente técnico da Anvisa por um juízo político, interferindo de forma indevida em procedimento de natureza tipicamente administrativa”.

A discussão parece mal colocada. Em primeiro lugar, porque as agências reguladoras e suas competências, embora sejam respaldadas pela Constituição, não decorrem diretamente dela. São criadas e disciplinadas por meio de leis ordinárias.

Não parece acertada a tese de que a opção político-legislativa de instituir autoridades reguladoras independentes suprima do Congresso a possibilidade de dispor sobre a matéria delegada, ou, mesmo, de extinguir a entidade reguladora criada (desde que se observe a iniciativa reservada do Presidente, neste caso). Não há autêntica “reserva de administração” que se funde em Lei, justamente porque diplomas posteriores – de hierarquia superior ou igual – sempre poderão alterar, excepcionar ou até revogar in totum a norma primitiva.

Em paralelo, não há como negar que as deliberações das agências, embora baseadas em argumentos técnicos, ostentam também um componente político fundamental. Ainda que a técnica fosse neutra e incontroversa (premissa bem distante da realidade), é política a decisão sobre o que fazer com aquilo que os técnicos apuram.

Podemos ilustrar o argumento com os movimentos para a liberação do uso medicinal e recreativo da maconha (tema discutido em nossa segunda coluna). Seria inconstitucional lei que, contrariando orientação ou suprindo a inércia da ANVISA, autorizasse o comércio da Cannabis para usos médicos ou recreativos?

Outro exemplo: imaginemos que, ao analisar um novo medicamento muito eficaz contra a AIDS, mas que comprovadamente cause a esterilidade do paciente, a ANVISA decida proibir a sua distribuição (alegando danos irreversíveis à saúde) e o Congresso, depois de mobilização social, opte por liberá-lo. Seria essa lei hipotética inconstitucional?

A resposta parece ser negativa para ambos os casos. A liberação de medicamentos e a proibição de substâncias psicoativas, embora exijam criteriosas análises científicas, implicam posterior juízo de conveniência e oportunidade – o qual pode ser exercido, inclusive com maior legitimidade democrática, pelo parlamento; ainda que caiba às agências fazê-lo ordinariamente.

Caso a motivação seja política, a reversão parlamentar de decisões das agências precisa percorrer as trilhas do processo legislativo, com todos os ônus a elas inerentes (notadamente a sujeição à sanção presidencial). Nessa hipótese, vale alertar pois já se tentou fazê-lo (e.g., PDC 562/16 e PDC 1123/2013), o Congresso não pode se valer do mecanismo de sustação de que trata o art. 49, V, da CRFB/88 – o qual só pode ser manejado contra atos normativos juridicamente viciados, atos que “exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.

Não se pode negar que é possível (e mesmo provável) que o parlamento se utilize da via legislativa para superar boas políticas regulatórias. No entanto, resultados tecnicamente indesejados fazem parte do jogo democrático e devem ser fulminados pelo Judiciário somente quando forem contrários à Constituição. Até seria possível pensarmos, mas de constitutione ferenda, num modelo em que as decisões das agências fossem imodificáveis pelo legislador: seria um trade-off entre accountability e independência técnica.

O que não se pode fazer, contudo, é inventar um sistema que não existe simplesmente para impugnar judicialmente leis com as quais não se concorde. Para além da patente ilegitimidade dessa solução, há um problema que ainda não se antecipou: amanhã, a decisão ruim pode vir das agências e não contaremos, exceto nos casos de injuridicidade, com nenhum canal para revertê-la.

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A decisão que atende à razoabilidade.

Por Renato Porto

A partir dos fundamentos da nossa República, considerando a divisão dos Poderes e as funções e prerrogativas do Legislativo, é difícil pensar que qualquer tema esteja fora da competência natural do Congresso Nacional. Desse ponto de vista, estritamente jurídico-conceitual, há que se concordar com a tese do prof. Accioly: a lei pode, sim, dispor sobre matéria de competência das agências reguladoras.

Todavia, há de se questionar se é saudável que isso ocorra dentro de um sistema no qual as agências foram criadas para dar segurança jurídica aos mercados regulados. Mais do que isso, foram criadas e ganharam estrutura formal, competências e técnica especializada capazes de construir melhor uma decisão de impacto econômico e social. Portanto estão, e digo desde já, mais adequadamente preparadas para construir um ordenamento de regras capaz de gerir mercados que, por tese, não conseguem se autorregular.

A primeira das provas cabais recai na experiência internacional em países com excelente regulação – expressa principalmente na segurança e qualidade de serviços e produtos oferecidos à sociedade. Daí decorre a pergunta científica, por assim dizer: se não houvesse benefícios na existência das agências, por que tais nações com tamanho histórico de desenvolvimento institucional se dariam ao “luxo” de uma suposta duplicidade ou sobreposição entre Legislativo e órgãos reguladores do Executivo?

Podemos responder até com nossa própria experiência, embora não tão madura quanto a europeia e a norte-americana. Não há na estrutura administrativa brasileira órgão capaz de desenvolver uma avaliação de impacto como as agências. Elas dispõem de ferramentas desenvolvidas para isso, como consultas públicas; acordos de cooperação internacional com as congêneres estrangeiras; metodologia aplicada à decisão com base na técnica; possibilidade de acesso à sociedade para críticas e contribuições ao desenvolvimento de um processo; e, entre outras vantagens imanentes à sua estrutura, equipes altamente qualificadas. Trata-se aqui de ferramentas consagradas internacionalmente nos parâmetros da moderna administração pública.

Entender as externalidades negativas e positivas de um mercado é tarefa a ser tecnicamente calculada para se ter, enfim, uma decisão que aproveite o próprio movimento do mercado para se regular. Ou, quando isso não for possível, para haver de fato uma intervenção estatal calculada. Aqui o uso do termo “tecnicamente” remete a uma enorme vantagem do órgão regulador: as agências aglutinam métricas muito mais precisas para aferir o custo-benefício da atuação do Estado, porque estão debruçadas não apenas nas teorias e/ou vontades políticas, mas na observação e atuação diária de seu objeto de regulação. As agências são, ainda, oxigenadas por métodos e doutrinas desenvolvidas dentro e fora do país, num grau de aprofundamento dos temas que dificilmente se vê no Legislativo – cuja iniciativa é, por natureza, muito mais ampla e generalizante.  Isso não significa comparação na qual se afirma um ser melhor que outro. Antes disso, representam papéis diferentes e complementares.

O modelo atual das agências pode muito bem suportar e favorecer decisões mais precisas do Estado. Apenas para citar um exemplo, não devemos esquecer a recente alteração do marco regulatório do setor elétrico por Medida Provisória, extremamente criticada por não ter passado pelo legítimo processo técnico da Aneel.

Voltando à matéria jurídica, questionar a capacidade do Legislativo de reformar decisões das agências reguladoras é a mesma coisa que questionar se o STF pode “legislar”. O atual sistema permite. Todavia, o campo natural de determinadas decisões é o Legislativo, por mais competente que os ministros do Supremo Tribunal Federal sejam. Ressalte-se: o campo natural de legislar é o Legislativo.

Por outro lado, acrescento que o juízo de conveniência e oportunidade não é do legislador. Abro parênteses para situar o conceito de juízo de conveniência e oportunidade, que ocorre quando o administrador, diante de duas decisões legais, opta por uma diante dos fatos apresentados. Se o congressista proceder assim no dia a dia, atuará não mais como legislador, em tese e em abstrato; estará atuando como administrador público. Afinal de contas, quem faz juízo de conveniência e oportunidade é a Administração Pública. Ao legislador foi dada a tarefa primária e precípua de fazer leis.

Porém, é de suma importância, em última análise, o fato de que tanto as decisões das agências reguladoras, quanto a decisão do legislativo, devem obediência aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e eficiência. Uma lei desprovida de razoabilidade é de todo inconstitucional.

No debate sobre o alcance das decisões das agências, a pergunta que deve sempre se impor, dentro do nosso ordenamento jurídico de controle dos poderes, é: qual das decisões, sejam regulatórias, legislativas ou judiciais, atendem melhor aos princípios da razoabilidade e eficiência (estes sim de matriz constitucional)?

Nesse sentido, são por demais lúcidos e didáticos os ensinamentos apresentados pelo Min. Luís Roberto Barroso no julgamento dos Recursos Extraordinários 566471 e 657718, em que profere: “a discussão deve paulatinamente ser transferida para […] outros fóruns, a saber: […] as instâncias técnicas do Ministério da Saúde e do SUS. O Poder Judiciário não é a instância adequada para a definição de políticas públicas de saúde”.

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A coluna Reg. é um projeto desenvolvido pelo Laboratório de Regulação Econômica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Reg.

João Pedro Accioly – Advogado. Graduado em Direito e Mestrando em Direito Público pela UERJ.

Renato Alencar Porto – Diretor da Anvisa. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília.

Fonte: Portal JOTA