No dia 1º de novembro deste ano, duas décadas após o marco de instituição do regramento legal das Organizações Sociais – OScom a Medida Provisória 1.591 de 9 de outubro de 1997, foi publicado o Decreto Federal 9.190/2017, novo instrumento que busca regulamentar e detalhar o tratamento dispensado a esta figura jurídica, na esfera federal.
Consolidado na Lei nº 9.637/1998, o modelo de OS, criado no âmbito da reforma de Estado desenvolvida no primeiro governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, prevê a atuação destas entidades por meio da celebração de Contratos de Gestão com o Poder Público, como instrumento capaz de contribuir para a realização de objetivos sociais, como o desenvolvimento da ciência da tecnologia, o aprimoramento da saúde, da cultura e da educação.
Tomando como base esta perspectiva, que enxerga na figura das OSs um ator importante na consecução de objetivos públicos, o Decreto recém-publicado avança em alguns aspectos, mas se equivoca em outros, especialmente para alguns setores que não se relacionam diretamente com a União. Por essa razão, há um evidente predomínio da regulação voltada ao setor de ciência e tecnologia como seu eixo central.
Esta peculiaridade do âmbito federal deve ser levada em consideração na análise do instrumento, ou seja, a simples incorporação da lógica do Decreto Federal aos demais entes (movimento comum na produção normativa) traria inconsistência relevantes para o modelo.
Tendo isto em mente, apresentam-se como exemplos positivos de dispositivos introduzidos pelo Decreto a possibilidade de renovação sucessiva dos ajustes (art. 16 do Decreto Federal), assim como a previsão explícita de consulta prévia às OSs na formulação da legislação orçamentária, o que indica uma intenção de garantir a manutenção de recursos ou, ao menos, sua previsão no orçamento (art. 18 do Decreto Federal).
Tais previsões favorecem uma maior perenidade e estabilidade da relação contratual, o que, em último exame, pode estimular melhores resultados na persecução dos objetos pretendidos, principalmente no campo da ciência e tecnologia, que envolve projetos de maior complexidade e de mais longo prazo.
Entretanto, outras disposições previstas no Decreto só fazem sentido quando analisadas sobre a lógica deste setor. Encaixam-se neste grupo os dispositivos que preveem: (i)a possibilidade de celebração de somente um Contrato de Gestão por Organização Social no âmbito federal, (ii) a qualificação da entidade como OS apenas no momento da celebração do Contrato de Gestão e consequente desqualificação automática da organização ao término do ajuste.
Apesar de salutares para o setor da ciência e tecnologia, para atividades desenvolvidas no setor de saúde e cultura, por exemplo, são lógicas que não se aplicam, pelas características envolvendo a assunção de serviços continuados. Assim, o Decreto Federal foi incapaz de incorporar uma visão mais geral sobre a atuação das Organizações Sociais.
Além destas particularidades próprias do âmbito federal, o Decreto perde a oportunidade de enfrentar outros aspectos problemáticos do universo do tratamento voltado às OSs, e que hoje constituem grandes desafios para a atuação destas entidades, especialmente no momento de crise fiscal.
A realidade atual das OSs, como parceiras do Estado na prestação de serviços públicos, transfere a estas entidades uma tremenda fragilidade decorrente de situações de inconstânciasnos repasses, de insegurança jurídica existente no momento de prestação de contas e no relacionamento com os órgãos de controle. Estes são problemas que ensejam a necessidade de uma atualização do tratamento legislativo, de forma a prever novas estruturas que confiram às OSs maior proteção, tanto de um ponto de vista da sustentabilidade econômica, como na sua relação com os órgãos de controle.
Faz-se necessário a elaboração de dispositivos legais que estabeleçam a criação de fundos de reserva ou de garantia no âmbito dos Contratos de Gestão, bem como o direcionamento do controle para a análise de resultados da parceria.
Percebe-se, inclusive, que ambos os aspectos foram incorporados em legislações recentes acerca da Organizações da Sociedade Civil (Lei nº 13.019/2014), em que, além da previsão dos fundos reserva, houve expressa incorporação da lógica do controle por resultados. Nos ajustes governados por esta legislação,os órgãos de controle são orientados a avaliar apenas o cumprimento das metas previstas, e passam para uma análise de elementos formais apenas na hipótese de descumprimento ou não atingimento de resultados pactuados.
Diante da dimensão das dificuldades enfrentadas pelas Organizações Sociais, e analisando as novas previsões introduzidas pelo Decreto Federal, percebe-se que este instrumento foi, de certa forma, tímido na regulamentação proposta. Os grandes desafios aos quais está sujeito o modelo de OS ainda carecem de tratamento jurídico mais efetivo e eficiente.
Neste tocante, cabe apontar que existe certa mobilização, tanto do legislativo federal, quanto da própria sociedade civil, no sentido de buscar incrementar a evolução legislativa quanto a este tema. A título de exemplo, expõe-se o PLS 427/2017, de autoria do Senador José Serra, que busca promover alterações na Lei nº 9.637/1998, mas que ainda se encontra em um estágio inicial de tramitação.
Uma atualização mais extensa e completa do regramento legal das Organizações Sociais é fundamental para que este modelo, como instrumento valioso de consecução de políticas públicas, possa se manter viável. Caso não seja observada a necessidade de revisão da Lei 9.637/1998, corre o risco do modelo de Organizações Sociais apresentar dispositivos ultrapassados e prejudiciais para a realização dos objetivos.
Rubens Naves é advogado do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados, professor aposentado pela PUC/SP, conselheiro da Transparência Brasil, Fundação Abrinq/Save the Children e Fundação Padre Anchieta.
Mariana Chiesa Gouveia Nascimento é mestre e doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, integra o escritório Rubens Naves Santos Júnior.
Fonte: Revista Consultor Jurídico (Conjur)