Encontra-se na pauta do Supremo Tribunal Federal o julgamento sobre o chamado “ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS)”, previsto no artigo 32 da Lei 9.656/98, que traz aparente ideia de justiça “Robin Hood”, ao adotar como solução imputar aos planos de saúde o custo de atendimento na rede pública. Ao contrário do pretendido, referido dispositivo legal cria duplicidade de cobrança para todos os titulares dos planos de saúde, gera distinção de tratamento, como medida grave de exclusão que reduz a universalidade de acesso, afasta o artigo 198 da Constituição Federal e encarece os próprios planos de saúde, na sua totalidade.
Como instituído, o ressarcimento ao SUS, pelo artigo 32 da Lei 9.656/98, tornou-se uma fonte adicional de custeio da seguridade sem autorização constitucional e contrária ao disposto no artigo 195, § 4º, da CF, pois só é cobrada dos planos de saúde, com consequente oneração dos custos e do preço pago por quem teria o direito, por igualdade de acesso, aos serviços públicos, o que se mostra irrazoável e desproporcional.
O artigo 32 da Lei 9.656/98 prescreve que o ressarcimento (critério quantitativo) será devido, como prestação compulsória, pelas operadoras dos planos de saúde (critério subjetivo – sujeito passivo), de acordo com normas a serem definidas pela ANS (agente de arrecadação), quando realizado o fato, ou seja, o serviço de atendimento à saúde prestado a seus titulares e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS (critério material).
Excluída a equivalência do ressarcimento ao SUS com “preço público”, “política regulatória” ou com “indenização”, verifica-se que o artigo 32, da Lei nº 9.656/98 guarda nítida tipificação como “tributo”. O ressarcimento é decorrente de ato lícito, qual seja, a utilização do serviço de saúde prestado por instituições do SUS, criado por lei, e cobrado como prestação pecuniária compulsória, a ser exigido pela ANS.
Claramente, o ressarcimento ao SUS não se configura como modalidade dos “preços públicos”. O preço público caracteriza-se como contraprestação, logo, deveria haver equivalência econômica entre o serviço de saúde prestado e o montante exigido pelo Estado, o que não ocorre com o ressarcimento do artigo 32 da Lei 9.656/98.
Quanto a ser equivalente de indenização, como uma espécie de recomposição do patrimônio, sanção a ato ilícito ou enriquecimento sem causa, não é o que acontece na hipótese do ressarcimento ao SUS, já que a exigência toma como base de cálculo os serviços lícitos de saúde em favor dos seus legítimos titulares, no exercício de típico direito subjetivo público, por força do artigo 196, da CF.
Apesar da denominação de “ressarcimento”, à nitidez, não há como conferir natureza de indenização privada ao ressarcimento ao SUS, sob regência do direito civil. A indenização privada pressupõe a existência de ato ilícito (i), nexo de causalidade (ii) e dano (iii). O ressarcimento, não obstante ter nomenclatura que o relacione a recomposição de algum dispêndio, não se mostra apto à exigência de ressarcimento para cobertura de algum dano, por ato ilícito.
A classificação do ressarcimento ao SUS, do artigo 32 da Lei 9.656/98, como uma relação de direito privado e que tem por finalidade evitar o enriquecimento sem causa das operadoras de plano de saúde, de modo induvidoso, é uma constatação fundada em petitio principii e desprovida de qualquer fundamentação em elementos técnico-jurídicos.
Como fica evidente, as alegações segundo as quais o ressarcimento ao SUS, pelo artigo 32 da Lei 9.656/98, seria decorrência de suposto “enriquecimento sem causa”, agridem a lógica funcional do modelo de responsabilidade civil, entabulado no Código Civil, numa aporia presumida de suposto benefício das operadoras com atendimento dos usuários do plano de saúde pela rede pública de saúde do SUS. Falta a prova e adequada constatação de equivalência entre os ilícitos presumidos e o valor da indenização.
Aceitar que o artigo 32 da Lei 9.656/98 possa criar ato ilícito e nexo causal com algum resultado de dano, por presunção, é o mesmo que afastar do poder judiciário o direito de acesso para reparar lesão ou ameaça a direito, além de derrogar parcialmente o Código Civil em todos os pressupostos sobre a reparação da responsabilidade civil.
Como o serviço público de saúde é garantido a toda a população, o seu aproveitamento pelo segurado em nada diminui o patrimônio público ou a ANS. Não há qualquer direito a “ressarcimento” pelo Poder Público, pois não há qualquer lesão ao seu patrimônio, vez que a saúde é seu dever e direito de todos. Impressionante verificar como fundamentos tão óbvios são olvidados.
Diversamente, o “ressarcimento” ao SUS tem natureza de tributo e classifica-se na espécie taxa, os termos do artigo 145, II, da CF e artigo 77, do CTN.
São os seguintes critérios da regra matriz de incidência da taxa do ressarcimento ao SUS do artigo 32 da Lei 9.656/98, a saber:
i) o critério material consiste no fato de utilizar o serviço público de saúde, específico e divisível, pelo acesso dos usuários de planos de saúde à rede do SUS;
ii) o critério temporal aperfeiçoa-se com a notificação de cobrança emitida pela ANS (§ 3º, do artigo 26, da Lei 9.656/98);
iii) o critério espacial será todo território nacional, pelo atendimento dos usuários nas entidades vinculadas ao SUS;
iv) o critério subjetivo define como sujeito ativo a União, que arrecada a taxa por intermédio da ANS (agente de arrecadação); e, como sujeito passivo a operadora de plano de saúde.
v) o critério quantitativo consiste no ressarcimento, como custo dispendido na prestação do serviço público de saúde aos titulares ou dependentes dos planos de saúde da operadora. A Tabela Única Nacional de Equivalência de Procedimentos (“TUNEP”) foi instituída pelo §1º do artigo 32 da Lei 9.656/98 (§ 1º – o ressarcimento será efetuado pelas operadoras ao SUS com base em regra de valoração aprovada e divulgada pela ANS, mediante crédito ao Fundo Nacional de Saúde – FNS), e pelo § 8º, os valores da taxa de ressarcimento ao SUS “não serão inferiores aos praticados pelo SUS e nem superiores aos praticados pelas operadoras”.
É vã a alegação de que o artigo 32 da Lei 9.656/98 justifica-se como política de intervenção do Estado, ao argumento de que isso permite ao SUS receber os valores despendidos com internações de pessoas que “deveriam ser atendidas na rede hospitalar privada”. Nada disso. Trata-se de uma “taxa”, indevidamente cobrada dos planos de saúde, não só porque como tal está eivada de inconstitucionalidades, mas também porque majora de forma anti-isonômica todos os titulares de planos de saúde.
Todos os cidadãos custeiam o SUS, inclusive os segurados de planos privados. Entrementes, por repercutir no preço, estes são duplamente onerados, uma vez que o valor do ressarcimento ao SUS pago pela sua operadora de saúde é embutido no preço do plano de saúde, além de já contribuírem para o financiamento do SUS, por meio do pagamento dos demais tributos.
Logo, é clara a inconstitucionalidade do artigo 32 da Lei 9.656/98, ao estabelecer cobrança na utilização do serviço público de saúde pelos portadores de planos privados de assistência médica, haja vista este ressarcimento repercutir no custo do seu plano, de forma anti-isonômica, em relação à utilização dos serviços pelos cidadãos que não possuem este tipo de produto.
O SUS tem a finalidade de efetivar o direito universal à saúde, com acesso em condição de igualdade. Como beneficiário ou dependente, dificilmente o titular de plano de saúde não será um típico contribuinte-usuário do SUS, na medida que o usuário do serviço público o faz como exercício de um direito subjetivo fundamental conferido pela Constituição (i) e porque participa do seu custeio, em regime de igualdade (ii), pagando suas contribuições.
A Constituição estabeleceu um significativo marco jurídico de proteção à igualdade de acesso à saúde pública e à universalidade de atendimento, que foi o Artigo 196, ao dispor que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Esta não é uma norma programática. Tem-se aqui um dever constitucional, dirigido aos poderes do Estado, para que estes promovam e defendam a saúde pública, estimulem a universalidade e igualdade de atendimento, elimine-se qualquer medida discriminatória e garantam sua continuidade mediante um corpo de leis eficiente e dirigido a esse fim de valor constitucional.
Por isso, o artigo 194 da CF especifica que a “seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. E, no parágrafo único, explicita como dever do Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos, dentre outros: I – universalidade da cobertura e do atendimento; e II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais. São estes vetores axiológicos que informam também a saúde, para a qual a Constituição, no artigo 196, confere direitos de acesso universal e igualitário às ações e serviços.
É exatamente a hipótese do artigo 32 da Lei 9.656/98, ao instituir regime que resulta, como efeito direto, em tratamento discriminatório contra aqueles titulares de planos de saúde privados e que, ao mesmo tempo, são beneficiários de acesso ao SUS, para o qual são sempre obrigados a contribuir, em regime de igualdade.
O caráter universal, além de definir o alcance da política pública permanente, representa a impossibilidade de o direito à saúde ser suprimido, total ou parcialmente, ou criar diferenciação entre os beneficiários. E a proibição de retrocesso protege a garantia de confiança legítima quanto à permanência dos princípios de direitos e liberdades fundamentais, sem afetações ao respectivo conteúdo essencial de cada um destes.
Assim, afirma-se a inconstitucionalidade do artigo 32, da Lei 9.656/98, por negar observância à universalidade e igualdade do acesso à saúde, haja vista a desproporcional exação que decorre da repercussão do custo do ressarcimento sobre o preço do plano de saúde, transferido aos usuários unicamente pelo fato de estes utilizarem-se dos serviços do SUS, e para o qual contribuem, em condição de igualdade, como dever constitucional (artigo 198).
Ademais, o artigo 32, da Lei 9.656/98, como fonte privada de financiamento do sistema incorre em diversas inconstitucionalidades, como ausência de legalidade na definição do critério da base de cálculo da taxa de ressarcimento e outros aspectos que determinam a prestação do crédito tributário.
A Constituição reserva à legalidade a determinação de todos os critérios da estrutura normativa do tributo. Por isso, apenas em relação aos impostos com finalidade extrafiscal – notadamente o IPI, o II, o IE e o IOF – encontra-se o Poder Executivo habilitado a aumentar ou reduzir “alíquotas” sem exigência de lei.
Ao examinar-se o disposto nos § 1º e 8º do artigo 32, da Lei 9.656/98, verifica-se evidente norma tributária em branco, pela ausência de critérios legais objetivos de definição da base de cálculo e da alíquota, transferidos para o poder regulamentar da ANS, o que ofende ao princípio da legalidade (artigo 150, I, o artigo 145, § 2º, da CF, e o artigo 97, IV do CTN).
Conforme o § 8º do artigo 32 da Lei 9.656/98, “os valores a serem ressarcidos não serão inferiores aos praticados pelo SUS e nem superiores aos praticados pelas operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º desta Lei”. Como a própria ANS a caracteriza, a TUNEP é “uma tabela de valores para pagamento por procedimento realizados, garantindo que os valores sejam sempre maiores do que a Tabela SUS e menores do que os valores praticados no mercado” (§ 8º do artigo 32, da Lei nº 9.656/98). Haja vista o postulado segundo o qual a base de cálculo da taxa de serviço precisa levar em conta o custo do serviço público, não há como se admitir como válido que a TUNEP traga valor diferente do custo do serviço como base de cálculo da referida taxa.
À luz deste fato, a taxa de “ressarcimento” ao SUS, acaso admissível sua criação, deveria ter valor equivalente ao custo operacional dos tratamentos prestados no âmbito do SUS. Como exemplo, bastaria limitar-se pelas Tabelas de Procedimentos, Medicamentos e Órteses, Próteses e Materiais Especiais – OPM, do SUS, constantes nas Portarias específicas do Ministério da Saúde (“Tabela SUS”).
A ANS, entretanto, opera o “ressarcimento” do SUS por meio de outra tabela, a TUNEP, com valores desproporcionais, ao exigir dos contribuintes valores muito superiores aos da Tabela SUS, a pretexto de cumprir regra legal de flagrante inconstitucionalidade, que é o disposto no § 8º do artigo 32 da Lei 9.656/98.
A capacidade tributária ativa (ANS) envolve as atividades de arrecadação e fiscalização de tributos, as quais podem ser delegadas, nos termos do que determina o artigo 7º do CTN, mas nunca para preencher critérios materiais inerentes à legalidade da base de cálculo e alíquota do tributo. Definitivamente, a delegação de poderes à ANS, como se encontra, é inconstitucional, porquanto a instituição de base de cálculo do tributo é matéria reservada à legalidade, mormente no caso da taxa, cuja exigência é expressa na Constituição (artigo 145, § 2º) e no artigo 97, IV do CTN.
Em conclusão, reafirma-se a inconstitucionalidade do artigo 32 da Lei 9.656/98 por se tratar de medida adicional discriminatória de financiamento da seguridade social, porquanto gera duplicidade de custeio sobre parcela específica de consumidores, os titulares de planos de saúde, inclusive sobre aqueles que nunca usaram do sistema público de saúde. Ademais, agride a observância à universalidade e igualdade do acesso à saúde, haja vista a desproporcional exação que decorre da repercussão do custo do ressarcimento sobre o preço do plano de saúde, transferido aos usuários unicamente pelo fato de estes utilizarem-se dos serviços do SUS, e para o qual contribuem, em condição de igualdade, como dever constitucional (artigo 198).
A relação jurídica de ressarcimento não é uma relação contratual, mesmo que tenha sua causa jurídica no interesse público, por não ser entabulada mediante concurso de vontades. Não se qualifica como “preço público”, portanto. E não se confirma como “indenização”, dada a ausência de dano ou de ato ilícito. Trata-se de obrigação ex lege, de cunho patrimonial, exigida de forma compulsória em virtude do uso de serviço público de saúde, específico e divisível, segundo as quantidades de acessos.
E ainda que mantido como válido, é amplamente inconstitucional o conteúdo do artigo 32 da Lei nº 9.656/98, como “taxa” do ressarcimento ao SUS. Não há como se admitir, no direito positivo brasileiro, que a lei tributária deixe de regular todos elementos essenciais dos critérios materiais (serviço público), subjetivos ou do critério quantitativo do tributo, no caso, da base de cálculo, ao delegar espaço normativo para tratar do seu conteúdo. Veda-o o artigo 150, I, o artigo 145, § 2º, da CF, e o artigo 97, IV do CTN. O Poder Executivo, ao fixar o crédito tributário do ressarcimento do SUS, deve obediência ao princípio da legalidade em todos os seus contornos.
Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).
Fonte: Revista Consultor Jurídico (Conjur)