A integração da pesquisa científica na prática de cuidados é fundamental para melhorar a qualidade dos cuidados em saúde. Em hospitais de excelência, a gestão deixou de tratar pesquisa como atividade paralela e passou a incorporá-la como ferramenta estratégica para a melhoria contínua dos serviços prestados aos pacientes.
Nesse sentido, um dos exemplos vem do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, que conta com um Centro Internacional de Pesquisa, com foco em quatro vertentes: mecanística, observacional, clínica e ciência de implementação. Desta maneira, a instituição busca atuar na geração de conhecimento para aprimoramento da prática clínica.
Alvaro Avezum, diretor do Centro Internacional de Pesquisa e head de Cardiologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, explica que, por meio da pesquisa mecanística, são geradas novas hipóteses científicas para serem avaliadas por meio da pesquisa observacional e clínica.
“A pesquisa observacional identifica determinantes de adoecimento ou fatores de risco para diversas doenças. A pesquisa clínica define a eficácia e a segurança de estratégias terapêuticas farmacológicas ou intervencionistas, e a ciência de implementação avalia como implementar na prática clínica os resultados da pesquisa com confirmação de benefícios, ou medicina baseada em evidência aplicada à prática clínica”, explica.
Avezum diz ainda que a tradução desta diretriz pode ser verificada por meio de indicadores de qualidade assistencial onde é avaliado se as melhores evidências científicas estão incorporadas na prática clínica institucional. “Esta é a única maneira de assegurar que os benefícios da pesquisa (diagnóstico e tratamento) sejam incorporados na prática assistencial para os pacientes.”
Formado por profissionais multidisciplinares qualificados e de alta performance, o Centro tem como objetivo apoiar o corpo clínico na realização de pesquisas, em parceria com a indústria farmacêutica, universidades e Governo. A instituição também mantém parceria com redes colaborativas internacionais, que multiplicam o potencial de acesso a dados e novos conhecimentos.
“Um exemplo é a TriNetX, que dispõe de 250 milhões de prontuários com dados da prática clínica de instituições de saúde em escala global, à disposição dos pesquisadores do hospital. Além disso, o Centro é a base brasileira do Population Health Research Institute (PHRI) e lidera nacionalmente o estudo Population Urban and Rural Epidemiology (PURE), a maior plataforma para entendimento dos determinantes do adoecimento no mundo, com mais de 200 publicações até a data atual”, detalha Avezum
Benefícios aos pacientes
Após análise dos dados levantados em um estudo e por meio dos resultados benéficos confirmados, publicação em revistas científicas e incorporação em diretrizes de sociedades médicas, as instituições de saúde podem construir protocolos assistenciais garantindo que os benefícios confirmados da pesquisa possam ser incorporados na prática clínica.
“Recentemente, publicamos os determinantes de eventos cardiovasculares (infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e insuficiência cardíaca) e de mortalidade precoce no mundo e na América do Sul. Identificamos em nosso país que 70% dos casos de eventos cardiovasculares e de morte precoce poderiam ser evitados por meio do controle efetivo de dez fatores de risco”, conta Avezum.
A instituição conduziu, em 2024, cerca de 150 projetos de pesquisa e publicou 154 artigos científicos em revistas nacionais e internacionais. Entre esses estudos, estão investigações que se relacionam diretamente com o envelhecimento populacional, tratando de temas que passam por doenças crônicas, câncer e demências.
Desafios na integração entre ciência e cuidado
Pesquisa de boa qualidade, respondendo questões úteis para a prática clínica, deve sempre estar integrada à prática clínica. Mas existem desafios, como o financiamento de longo prazo, a necessidade de capacitação em gestão de projetos científicos e a superação de barreiras regulatórias. No entanto, o cenário aponta para uma convergência cada vez maior entre ciência e assistência, com a gestão hospitalar no centro dessa transformação.
“Não deve haver dicotomização entre pesquisa e prática clínica. Instituições de saúde devem investir em pesquisa e isto demanda investimento financeiro, contratação de profissionais com treinamento formal dedicando tempo à pesquisa e, consequentemente, a cultura institucional ou mentalidade clínico-científica torna-se base angular para a boa prática médica. Não basta dizer: ‘Fazemos pesquisa em nossa instituição’. Precisamos assegurar que pesquisa de qualidade e impacto clínico estejam alinhados”, destaca Avezum.
Núcleos de Inovação Tecnológica: a ponte entre a ciência e a prática clínica
Os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) têm desempenhado um papel estratégico na transformação do conhecimento científico em soluções aplicáveis à prática clínica. Presentes em hospitais, universidades e centros de pesquisa, esses núcleos atuam como facilitadores do processo de inovação, promovendo a conexão entre pesquisadores, profissionais de saúde, setor produtivo e a sociedade.
O objetivo é garantir que descobertas científicas saiam do papel e se convertam em tecnologias, produtos e serviços que gerem impacto direto na assistência à saúde.
Esses núcleos ajudam a mapear demandas reais da prática clínica e orientam os esforços científicos para responder a desafios concretos, como o aprimoramento da segurança do paciente, o uso de inteligência artificial no apoio à decisão médica ou o desenvolvimento de terapias personalizadas. Ao mesmo tempo, oferecem suporte técnico-jurídico, identificam oportunidades de financiamento e aproximam os pesquisadores de parceiros estratégicos.
Fotini Santos Toscas, pesquisadora científica do Instituto de Saúde, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, conta que o NIT atua em rede de colaboração e com laboratórios multiusuários do Sistema Paulista de Ambientes de Inovação (SPAI), que visa incentivar e coordenar a interação entre os diversos ambientes de inovação do Estado, como parques tecnológicos, incubadoras e centros de inovação, para promover o desenvolvimento econômico e social.
O NIT atua em articulação com os Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS) e com os Núcleos de Evidências (NEVs) para traduzir resultados de pesquisas em soluções clínicas utilizando as ferramentas:
- Estudos de prospecção tecnológica e monitoramento do horizonte tecnológico para identificar oportunidades e lacunas para absorção tecnológica e assim direcionar esforços de pesquisa e desenvolvimento com foco na internalização do Sistema Único de Saúde (SUS):
- Estudos de avaliação precoce de tecnologias em saúde para subsidiar decisões em fomento nas etapas de PD&I por meio de análise de viabilidade técnica, econômica e clínica ainda nas fases de desenvolvimento tecnológico, permitindo identificar valor terapêutico, segurança, efetividade e aspectos organizacionais;
- Gestão de evidências com sistematização dos dados científicos e tradução do conhecimento em protocolos aplicáveis à rotina clínica;
- Mapeamento de demandas reais do SUS para orientar a pesquisa aplicada;
- Participação em comitês para priorização de temas com lacunas de pesquisa para elaboração de editais de fomentos dirigidos e focados em necessidades clínicas não atendidas;
- Parcerias interinstitucionais com universidades, institutos de pesquisa e serviços de saúde, por meio de projetos e acordos de cooperação técnica, especialmente com o Hospital das Clínicas e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, além de parcerias com as Secretarias Municipais de Saúde e com o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS).
Fotini cita alguns exemplos de tecnologias ou soluções que tiveram impacto direto em programas públicos de saúde. São elas:
- Caderno de atenção à saúde sexual e reprodutiva das mulheres em municípios paulistas;
- Implementação de linhas de cuidado em saúde materno-infantil e saúde do adolescente;
- Caderno de assistência farmacêutica em um município paulista.
Acreditação hospitalar fortalece cultura de pesquisa e inovação
A busca pela acreditação hospitalar tem se revelado um importante catalisador para o fortalecimento da cultura de pesquisa e inovação nas instituições de saúde. Mais do que um reconhecimento formal, o processo de acreditação estimula mudanças estruturais e culturais que impactam diretamente a produção de conhecimento e a adoção de soluções inovadoras.
“Um dos principais efeitos da acreditação é o incentivo à melhoria contínua da qualidade e da segurança do paciente. Esse ambiente, mais organizado e voltado para resultados, favorece a adoção de práticas assistenciais baseadas em evidências e impulsiona a busca por respostas criativas a problemas complexos. Ao exigir que decisões clínicas e gerenciais sejam fundamentadas em dados e boas práticas, o processo naturalmente desperta o interesse por pesquisa aplicada e contribui para o desenvolvimento de novos modelos assistenciais”, diz Gilvane Lolato, gerente geral de Operações da Organização Nacional de Acreditação (ONA).
Além disso, a acreditação exige a sistematização de processos, a definição de indicadores de desempenho e a realização de análises críticas constantes. Esse ecossistema estruturado favorece a geração de conhecimento dentro das instituições, consolidando um ambiente propício à inovação.
Gilvane explica que o fortalecimento da cultura científica nos hospitais passa por diversos pilares do processo de acreditação. Entre eles, destaca-se a gestão baseada em evidências e a monitorização por indicadores de desempenho, que estimula a análise crítica dos resultados e a identificação de oportunidades para soluções inovadoras.
Outro ponto diz respeito à promoção de ciclos de melhoria contínua, metodologia que incentiva a experimentação, a avaliação sistemática e a adoção de práticas mais eficazes. A educação permanente, também exigida pelas acreditadoras, contribui para formar profissionais mais preparados e engajados com o pensamento científico, abrindo espaço para discussões sobre novas tecnologias e evidências emergentes. Por fim, Gilvane cita a governança clínica fortalecida, o apoio institucional à pesquisa e as parcerias com universidades como agentes que ajudam a consolidar a ponte entre o saber acadêmico e a prática assistencial.
“Um dos legados da acreditação é o estímulo à formação contínua. Os programas de educação permanente vão além da atualização técnica: promovem o pensamento crítico, o questionamento das práticas e a busca por melhores resultados. Com isso, profissionais de diferentes áreas passam a integrar comissões científicas, colaborar em projetos de pesquisa e propor melhorias sustentadas por evidências.”
A executiva explica que, nos próximos ciclos de avaliação, a acreditação hospitalar pode incorporar mecanismos ainda mais eficazes para valorizar a ciência e a inovação. Entre as possibilidades, estão:
- Inclusão de critérios específicos voltados ao estímulo da pesquisa clínica e da inovação tecnológica;
- Reconhecimento de boas práticas com selos ou menções especiais, que incentivem a replicação de experiências bem-sucedidas;
- Valorização de parcerias com universidades e centros de pesquisa, institucionalizando a produção de conhecimento;
- Criação de núcleos de pesquisa, comitês de ética e programas formais de inovação aberta;
- Estabelecimento de indicadores que mensurem a produção científica, o uso de tecnologias emergentes e o impacto de projetos-piloto.
A integração entre pesquisa científica e prática assistencial já não é mais uma tendência futura — é uma exigência para instituições que desejam oferecer cuidado de excelência aliado à sustentabilidade do sistema de saúde. À medida que a gestão hospitalar avança na consolidação de uma cultura baseada em evidências, colaboração e melhoria contínua, fortalece-se também a capacidade do sistema de saúde de responder aos desafios com soluções que nascem da ciência e se concretizam no atendimento.
Fonte: Cristina Balerini - Especial para o Saúde Business