» CRISTOVAM BUARQUE
Professor Emérito da UnB e Senador pelo PDT-DF

O Brasil tem todos os recursos necessários para fazer o sistema de saúde funcionar, atendendo a população eficientemente: centenas de faculdades de medicina e enfermagem, escolas de engenharia sanitária, indústrias farmacêuticas e de equipamentos médicos. Apesar disso, é óbvio para o país e até para o mundo, que nosso sistema entrou em colapso. Não apenas pelo que se vê todos os dias, nos meios de comunicação, mas também pela dimensão e tragédia das epidemias, como da microcefalia, que tudo indica está sendo transmitida pelo vírus zika.

Ao dizer que o Brasil “perdeu feio” a batalha sanitária contra o mosquito Aedes aegypti, o ministro da Saúde assumiu que o Brasil “perdeu feio” a batalha da saúde. Não apenas contra o Aedes aegypti. Perdeu feio a batalha do saneamento, deixando as ruas e casas como lugares de águas paradas. Perdeu feio a batalha da saúde preventiva e primária, concentrando o atendimento no funcionamento de hospitais e semi-hospitais. Perdeu a batalha dos hospitais porque não conseguimos atender toda a demanda por saúde em locais distantes, difíceis de funcionar satisfatoriamente com o corporativismo e as diversas formas de corrupção, em vez de implantar um sistema de saúde local para a família.

O Brasil perdeu feio a batalha da concepção eficiente do sistema de saúde: a filosofia e a gestão. Perdeu-se ao concentrar o problema na questão financeira, como se dinheiro no sistema funcionasse da mesma forma como sangue na veia dos doentes anêmicos. O sistema até pode vir a precisar de mais dinheiro, mas colocar mais dinheiro nele na sua atual concepção e características de gestão provocará desperdício de recursos sem dar o serviço de qualidade de que a população precisa. Antes de mais dinheiro, o sistema precisa mudar a concepção e a gestão.

Um sistema que assegure saúde aos brasileiros tem de ser visto em sua complexidade: entender o papel da educação de cada pessoa para cuidar melhor da saúde pessoal e para ter formação cidadã que evite os diferentes mosquitos que infernizam os trópicos e nossas malcuidadas cidades; fazer o atendimento da saúde-educação — “sauducação” — na adolescência, especialmente para meninas, com prevenção à gravidez precoce, ensinar a importância da alimentação e do esporte para uma vida saudável.

Fazer os investimentos necessários em saneamento e água potável, cuja ausência é causa de tanto sofrimento e tanta pressão sobre os hospitais; apoio às mulheres gestantes e ensino de técnicas de cuidados das crianças, especialmente recém-nascidas e importância da amamentação; cuidados especiais com a saúde infantil, em casa e na escola; sistema abrangente de checapes capaz de antecipar diagnósticos, evitando mortes antes do tempo e reduzindo custos e sofrimentos. Para fins de lucro no setor privado e uma revolução que transforme a gestão dos hospitais estatais atualmente sob os interesses de empreiteiras e fornecedores de equipamentos e remédios e submetida às forças corporativas nas unidades estatais, uma gestão conforme o interesse do público em geral e do usuário em particular.

Tudo isso é quase impossível hoje, porque a saúde está doente devido à doença da política, que define os rumos e a estrutura do sistema de saúde. Em primeiro lugar, ela é vista como setor de lucros para o setor privado, donos de consultórios, hospitais e empresas de seguro. Em segundo lugar, porque a política estatal serve menos ao público e aos doentes do que aos empreiteiros que constroem os hospitais, aos sindicatos que representam os servidores em busca de melhores salários e menor carga de trabalho; aos fornecedores de equipamentos, remédios, comida, roupa e aos políticos desejosos de nomear cabos eleitorais. O sistema não está anêmico, ele está desequilibrado social, política e moralmente.

Mais grave, porém, é que seu desequilíbrio é apenas parte do desequilíbrio geral da gestão do setor público do país. O sistema de saúde é um pequeno elemento de um sistema guiado por interesses da política menor, sem compromissos públicos, nem concepção inteligente. É como se o sistema social sofresse de microcefalia porque perdemos a batalha da gestão das coisas públicas — e não foi para o Aedes aegypti. Foi para o Aedes brasilis. O problema não é de gestão da saúde pública, mas de saúde da gestão pública: saúde moral, política e técnica.

Fonte: Artigo publicado no jornal Correio Braziliense