Crédito: Leandro Godoy - ClasssaúdeNa era do conhecimento e da informação transmitida em segundos, não é difícil conhecer exemplos de sucesso de sistemas de saúde mundo afora. Mas mesmo na globalização, onde tudo tende a se adequar a um padrão, as barreiras culturais e institucionais ainda se mostram como desafio. Buscar modelos fora do país é uma alternativa, mas olhar para as inovações nacionais pode ser um caminho mais fácil. É o que acredita o economista da saúde André Medici. Participante do movimento de construção do Sistema Único de Saúde, ele acredita que a grande virada do modelo será a regulação do sistema, no pagamento por desempenho e em soluções como a telemedicina. De sua casa, nos Estados Unidos, ele conversou, por telefone, com FH, sobre esses e outros assuntos.

Revista FH: Em 2010, o Banco Mundial organizou um estudo sobre modelos de remuneração. Esse assunto ainda é um grande desafio, segundo os executivos do setor de saúde brasileiro. Qual modelo se adaptaria melhor ao Brasil? O fee for service está próximo do fim?


André Medici:
Todos acham que tem de mudar o modelo do fee for service no Brasil. A questão e a dificuldade é como vencer a inércia em relação a isso. É muito difícil, nesse momento, criar processos para pagar pelo serviço de acordo com processos que estão vinculados a resultados. Por que isso acontece? Primeiro, porque não sabemos qual a estrutura de custo do sistema de saúde, pois o Brasil tem pouquíssimos lugares onde existe uma avaliação ou uma organização dos sistemas de custos associados a hospitais. Não se sabe, basicamente, quanto custam os procedimentos e o que está sendo pago. E, se não existe um sistema de custo, é muito difícil saber se o pagamento por meio da tabela do SUS corresponde à realidade.

Na verdade, sabe-se que não corresponde. Em alguns casos, para determinados procedimentos de alta e média complexidade, são pagos valores maiores se comparado aos preços de mercado, enquanto procedimentos mais simples e de atenção básica ou média complexidade são pagos com valores abaixo do mercado. É necessária uma estruturação através da criação do sistema de informação, que permita à entidade pagadora saber quais são os custos por de trás desse processo e como é que a estrutura de custos se coloca dentro dos preceitos do mercado. Outro ponto é a reestruturação de sistemas de informação, ou seja, para ter pagamento vinculado ao desempenho é necessário um bom sistema, que permita saber se os resultados estão sendo, realmente, alcançados. Falta a criação de uma estrutura que permita elementos para que o sistema possa ser remunerado dessa forma.

FH: Mais de 20 anos após a criação do SUS, o acesso ainda é um problema. Como solucioná-lo?

Medici: Existem várias questões que vinculam o tema acesso e uma delas é a falta de infraestrutura. Há muitas regiões sem estrutura suficiente para oferecer acesso a toda população. Isso é comum, por exemplo, em zonas rurais da região Norte e nas periferias de algumas áreas metropolitanas. Mas há uma série de ações, que podem melhorá-lo. A primeira delas é a estruturação do sistema em redes de saúde, pois elas permitem mapear as necessidades de saúde de uma determinada população, em um determinado lugar, e, assim, planejar os investimentos. Mas, também, é preciso ter estrutura de recursos humanos qualificados que possam chegar a essa rede de serviços.
Esse é um processo bastante complicado, no caso do Brasil, temos dificuldade enorme em levar médicos a regiões mais distantes, pois não existem incentivos econômicos. Às vezes, os municípios pagam salários enormes para atrair o médico para certas regiões em razão da ausência de condições importantes para o mercado médico como aprendizado e atualização, integração com seus pares, condições para uma vida familiar e etc.; não existe esse tipo de estrutura em regiões mais pobres. Outra ação que permite aumentar o acesso é a existência de profissionais de nível médio nessas regiões. Assim, através da telemedicina, eles podem receber algumas instruções e fazer a atenção básica, pela via remota. O que tem crescido muito na América Latina e nas áreas mais rurais é a teleconsulta, processos pelos quais as pessoas vão a um estabelecimento e mesmo que não tenha médico, são atendidas por um especialista através de um terminal de vídeo. Essas ações têm melhorado o acesso, mas também não são as únicas e nem as mais simples, já que dependem de conectividade e, no Brasil, também falta esse tipo de coisa.

FH: Quais são as inovações que estão acontecendo nos sistemas de saúde no mundo? O que poderia ser implantado no Brasil?

Medici: Falamos de inovações pelo mundo, mas existem inovações dentro do Brasil que podem ser aplicadas em outras regiões. Por exemplo, o modelo de central de regulação de leitos utilizado na cidade de Curitiba (PR), é um sistema interessante que poderia ser utilizado em outras cidades. Ele permite, através de chamadas telefônicas, saber da disponibilidade de leitos, em tempo real, de toda a rede da região. Com isso, se faz uma boa triagem dos pacientes, pois, muitas vezes, as pessoas vão ao hospital e poderiam ser atendidas pelo nível mais baixo de complexidade, acaba se gastando muito com sistema. Por isso, a regulação do acesso é um dos elementos importantes e o Brasil já tem soluções para isso. É só trabalhar um pouco mais e aplicar em outras regiões.

Outro exemplo importante é o pagamento por desempenho. A Bahia está criando uma fundação, onde os médicos de família são pagos por desempenho, pelos resultados alcançados com as melhorias dos indicadores de saúde das famílias atendidas por eles. Esta é uma inovação que também pode ser utilizada em outros lugares. As grandes inovações que conheço em países similares ao Brasil ainda estão muito ligadas à forma de organização do acesso por meio do pagamento por desempenho. Outro ponto importante é aumentar a possibilidade de baratear o serviço e fazê-los melhor com a contratualização. Estratégias como as Parcerias Público-Privadas e a Organização Social de Saúde (OSs) são importantes e, no Brasil, isso tem facilitado melhorias como acesso, resultado, e, de alguma forma, certo nível de controle e conhecimento dos gastos públicos.

FH: Em sua opinião, entre os países que compõem os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), como o Brasil está no que diz respeito ao sistema de saúde e acesso à saúde? Qual país tem mais avanços?

Medici: O Brasil tem mais avanços na comparação com o bloco. Não é o país com mais gastos, pois a Rússia e a África do Sul são os Brics que gastam mais. Mas em qualidade relativa do acesso, ou seja, produção de serviços e acesso em relação ao nível de gasto, o Brasil tem um desempenho muito bom. Cada Bric tem seu problema, eles são homogêneos na estratégia de desenvolvimento, mas são muito heterogêneos no que diz respeito ao tamanho e aos seus problemas. A China, por exemplo, é um país onde se gasta muito pouco com saúde, mas conseguiu, de alguma forma, avançar na atenção básica, pois tem uma eficiência grande em relação ao pouco que é gasto. Mas lá há um grande problema de acesso aos hospitais e o país vai fazer, agora, um investimento de mais de US$ 200 milhões nos próximos cinco anos, para construir hospitais que permitam criar acesso. Os chineses têm problemas de asseguramento, pois depois do fim do comunismo, a estratégia de proteção à saúde foi desmobilizada e hoje em dia as populações rurais pagam pelos serviços de saúde, o que representa um custo muito grande para as famílias.
A Rússia tem sérios problemas de promoção e prevenção à saúde e controle de fatores de risco como alcoolismo e obesidade. A mortalidade precoce por doenças crônicas em países como a Rússia é muito grande tanto que o país gasta muito mais em saúde do que o Brasil e tem expectativa de vida menor. Já a Índia tem avançado em sistemas de saúde com soluções bastante criativas, mas é um modelo que gasta menos de US$ 20 per capita por ano, como se pode oferecer assistência à saúde de qualidade com um gasto tão baixo? São desafios diferentes.

FH: A judicialização do sistema de saúde brasileiro leva milhões de reais todos os anos, que poderiam ser mais bem distribuídos e atender a uma parcela maior da população. Por outro lado, as pessoas recorrem à Justiça por considerarem este um caminho mais eficaz para conseguir acesso a tratamentos e cirurgias. Como resolver essa equação?

Medici: A questão da judicialização passa pela aceitação e definição sobre o que o Governo e a sociedade brasileira querem financiar da saúde. O grande problema é que a Constituição de 1988 definiu um conceito de integralidade que é aberto. Hoje em dia, por exemplo, existem pessoas que pedem até fraldas para bebês, no caso de São Paulo. Por isso, é preciso definir, primeiramente, qual é o conceito de integralidade. Está certo oferecer saúde completa à população, mas isso depende de vários fatores. Primeiro, é preciso definir qual é o conjunto de serviços que deve ser financiado. Existem coisas que não estão dentro desses serviços, mas estão sendo financiadas, pois não existe uma fronteira. Essa fronteira tem de ser estabelecida. Ela deve considerar a prioridade, ou seja, os principais problemas de saúde e, depois, a limitação dos recursos, pois não se pode financiar além do que é possível com a arrecadação do governo.

Outro ponto é o princípio da inclusão progressiva de recursos, ou seja, toda vez que o sistema de saúde tiver mais recursos, ele vai incluindo gradualmente. Mas o que existe hoje é muito complicado. Muitas vezes, a classe média e a classe média alta exigem da Justiça o que não estão sendo financiado pelo SUS, como remédios experimentais, por exemplo. E a Justiça dá ganho de causa, quando, efetivamente, esses recursos não seriam, necessariamente, importantes aplicados nisso. Então, o governo, o município e o estado deixam de financiar coisas importantes de saúde para pessoas que não tem “voz”- aquelas que não sabem que podem pedir os recursos na Justiça-, para financiar para àquelas, que, muitas vezes, têm capacidade de pagamento, ou, eventualmente, poderiam pagar através do seguro saúde.

Por isso, vejo a necessidade de estabelecer prioridades de saúde. Primeiro, devemos saber quais são as prioridades que se deve financiar. Depois, fazer com que elas sejam cumpridas, assim, todos aqueles que demandarem na Justiça algo que está dentro dessas prioridades terão todo direito de ganhar, mas o que estiver fora do que foi definido não será financiado. E o terceiro ponto é estabelecer o limite para que se possa avançar na progressividade e chegar ao ponto, de que toda vez, quando algo novo for criado ou o houver mais recursos, o sistema possa incluir outras prioridades que não estavam contempladas naquele momento porque não eram tecnicamente viáveis ou não estavam no orçamento.

FH: Você defende um modelo de prioridades de acordo com o perfil epidemiológico da população para alocar recursos. Como funcionaria no Brasil, que ainda tem epidemias e doenças de países subdesenvolvidos, como dengue e mortes por desnutrição, e ainda enfrenta problemas de nações desenvolvidas, como obesidade, câncer e outros problemas crônicos? O que priorizar?

Medici: O Brasil está progressivamente aumentando o peso das enfermidades crônicas em relação às doenças transmissíveis, mas ainda tem o que se chama de “double burden of disease”, ou seja, uma dupla carga de enfermidades, porque temos as doenças ainda associadas aos países mais pobres como: mortalidade materna, infecções de tuberculose, Doença de Chagas e malária e etc. O que é importante nesse caso é fazer estudos mais sistemáticos e periódicos sobre cargas e enfermidades, o último destes foi realizado em 1998. Está ocorrendo uma atualização desses estudos com dados de 2010, mas eles precisam ser feitos, pelo menos a cada cinco anos, para determinar quais são as prioridades, porque o perfil de um País com tantos progressos e mudanças demográficas e epidemiológicas muda rapidamente. Com o perfil é muito mais fácil pré-estabelecer quais são as prioridades, pois o governo dispõe da informação necessária para planejar as prioridades de saúde que o sistema irá apoiar e financiar.

FH: No Brasil, convivemos com um sistema de saúde misto, parte público e parte privado. A Constituição de 1988 coloca a saúde como um direito do cidadão e dever do Estado, mas, em 1998, o setor privado passou a ser regulamentado. Hoje ainda há um forte embate entre operadoras e sistema público: o SUS cobra das operadoras os atendimentos em sua rede, mas as operadoras se apoiam no argumento do “dever do Estado” para contestar a cobrança e no final os custos continuam com o governo. Qual a sua opinião sobre isso?

Medici: Defendo uma integração maior entre o sistema de saúde suplementar e o SUS, as pessoas poderiam ter mais opções. Por exemplo, poderia se usar o SUS ou planos privados, as pessoas teriam essa opção, mas a regulação dos dois seria a mesma. Ou seja, se o SUS, de alguma forma, estruturasse a atenção através de planos de saúde público, de certa forma, passaria a existir um acesso regulado ao setor saúde e tornaria possível fazer a gestão da saúde. Por exemplo, uma pessoa com renda baixa, pode entrar no plano oferecido do SUS ou no plano da saúde suplementar. No SUS, de alguma forma, o estado pagaria para a pessoa. Se ela entra na saúde suplementar, o estado vai pagar a mesma coisa e ela repassará o recurso à saúde suplementar seja com um voucher ou com a transferência direta de recursos à saúde suplementar, por exemplo. Mas para ter um sistema com esse tipo de opção é muito importante estabelecer as regras do jogo para que o setor privado seja financiado adequadamente pelos serviços prestados, pois sabemos que tem muita coisa no SUS que é subfinanciado, assim como também existem muitas ineficiências dentro do SUS, que fazem com que ele gaste mais do que deveria gastar em determinadas áreas. Para isso, o país tem que avançar mais em mecanismos de gestão da saúde e isso ainda é uma discussão muito tênue no Brasil. Enfim, a solução para isso é que os dois sistemas fossem mais integrados.

 

Fonte: Saúde Web