Uma consulta ao Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), do Ministério da Saúde, mostra que há dezenas de médicos com uma carga de trabalho que levanta suspeitas sobre o funcionamento do Programa Saúde da Família (PSF). Somente no Paraná, 40 médicos do PSF têm registradas jornadas de trabalho de pelo menos 90 horas por semana, o que daria quase 13 horas de trabalho por dia, sete dias por semana. O número é superior ao dobro do máximo permitido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que é de 44 horas semanais. Em alguns casos, a carga dos médicos chega a 130 horas, o que exigiria uma média de 18 horas diárias de trabalho.

Foto: Roberta de Almeida está registrada em hospital em que não trabalha desde 2006

Crédito: Josué Teixeira/Gazeta do Povo

Por trás da incoerência das cargas horárias há fraudes no sistema público de saúde que podem ser constatadas com o confronto de dados do sistema: médicos empregados pela rede pública que trabalham menos do que o declarado ao Sistema Único de Saúde (SUS) ou prefeituras que mantêm médicos que deixaram de atuar na cidade em seus registros para não perder repasses federais. Há casos em que o sistema não foi atualizado, o que não configura uma fraude, mas dificulta a fiscalização.

“Um sistema que serviria para controlar e fiscalizar os profissionais se mostra falho. É preciso discutir junto com a sociedade mecanismos que possam melhorar a gerência da saúde no país”, ressalta o professor da Univer­­sidade de Brasília (UnB) especialista em Ad­­mi­­nistração Pública, José Matias-Pereira. Segundo o Ministério da Saúde, o valor médio repassado é de R$ 6,7 mil por equipe do PSF. No Paraná existem hoje 1.819 equipes e no Brasil, 32.355.

Em 2011, um relatório da Controladoria Geral da União (CGU) apontou a existência de problemas no CNES, como médicos que não comparecem ao trabalho e municípios que inscrevem médicos sem o conhecimento deles para receber os recursos. O ministério havia prometido aperfeiçoar o sistema.

Entretanto, outras falhas foram encontradas pela Gazeta do Povo. Segundo o CNES, há médicos no Paraná com dois registros no PSF – o que é proibido por lei; profissionais que atuam em cidades distantes, como Maraú (BA) e Aracaju (SE), que ficam a cerca de 600 quilômetros de distância; e outros que trabalham 132 horas por semana. Este é o caso do médico Fernando Hamamoto, que atua em São Pedro do Iguaçu e em Diamante do Oeste, ambas no Oeste do estado, distantes 44 quilômetros uma da outra.

Mandraque da Medicina

Hamamoto confirma que trabalha 132 horas na semana, conforme aponta o CNES. “Conhece médico mandraque? Então, eu sou um [risos].” Médico do PSF em São Pedro do Iguaçu por 40 horas semanais, ele diz que supera as Leis da Física e consegue exercer o cargo de diretor de um hospital particular na cidade por duas horas na semana e ainda atuar em outros cinco postos de saúde. Hamamoto ainda trabalha quatro horas por semana em um centro de saúde público em Diamante do Oeste e mais seis horas em outro hospital privado na mesma cidade.

“Eu trabalho 24 horas sem parar. Na verdade, fico mais no hospital, já que sou proprietário. Como as cidades são pequenas, se tiver algum paciente para atender nos postos de saúde, me chamam e eu vou. Não fico lá direto”, revela o médico. Funcio­­nários da unidade do PSF de São Pedro do Iguaçu confirmaram que Hamamoto trabalha duas horas por dia, das 8 às 10 horas. O correto seria que ele atuasse no local oito horas diariamente.

Médicos dizem que informações são antigas

Caso o Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) não seja atualizado, abre-se brecha para que as prefeituras municipais mantenham profissionais que não estão mais atuando na cidade no cadastro com o intuito de continuar a receber recursos federais. No ano passado, o Ministério da Saúde detectou 2.298 equipes do Programa Saúde da Família (PSF) com irregularidades, sendo que 90 eram do Paraná.

Um caso suspeito de irregularidade é do médico Décio Feola Júnior. De acordo com registros do CNES, ele atua em uma equipe do PSF de Maraú (BA), presta serviços ao centro de saúde de Ipiranga (PR), a um hospital privado de São Pedro (SP) e em uma unidade do PSF de Itaí (SP). Segundo o SUS, o total de carga horária dele chega a 134 horas semanais. Mas Feola Júnior conta que não trabalha há seis anos na Bahia e há cerca de três não atua mais em Ipiranga.

“De certo, o pessoal da Bahia deixou meu nome para fazer corpo clínico [para] dizer que tem gente trabalhando [no PSF]. Agora eu estou restrito ao estado de São Paulo”, suspeita o médico. A secretaria de Saúde de Maraú não foi encontrada para comentar o assunto até o fechamento da edição.

Desatualização

Já o caso da médica Roberta Tavares de Almeida é diferente. Segundo o CNES, ela trabalha 90 horas semanais. Ela argumenta que atua apenas no PSF de Ponta Grossa, por 40 horas na semana. Contudo, os registros do SUS indicam que ela ainda trabalha em um hospital privado em Aracaju (SE), por duas horas na semana, e em outros três hospitais na capital paulista. “Isso deve ser uma falha no sistema. Eu não atuo em Aracaju desde 2006 e saí de São Paulo no ano passado”, diz a médica.

Vale ressaltar que, de acordo com o Sindicato dos Médicos do Paraná (Simepar), a carga horária média de um médico recomendada é de 20 horas semanais. “Sabemos que quase ninguém respeita isso. As consequências são médicos estressados, cansados e que não conseguem atender bem o paciente”, afirma a diretora do sindicato, Cláudia Aguilar.

O Ministério da Saúde argumenta que “constitui responsabilidade dos gestores municipais, estaduais e do Distrito Federal, bem como dos gerentes de todos os estabelecimentos de saúde, a manutenção e a atualização sistemática dos cadastros no CNES dos profissionais de saúde”.

Fonte: Gazeta do Povo