O artigo foi escrito pelo diretor-geral da CMB, José Luiz Spigolon

O Brasil vive um momento de grandes conturbações: a conjuntura de crises econômico-financeira, política e moral tem provocado insegurança em todos os setores da nossa economia e da sociedade em geral. Não é diferente o que vem ocorrendo no âmbito da saúde pública. Recentemente foi aprovada a Emenda Constitucional 86, que alterou a sistemática do financiamento da saúde pública, passando a corresponder a 13,2% das receitas correntes líquidas da União, implicando em um orçamento para a Saúde na casa de R$ 100,2 bilhões em 2015, contra os originais R$ 103,9 bilhões, se tivesse sido mantida a regra anterior. As despesas projetadas para 2015 chegam a, no mínimo, R$ 107,6 bilhões, aí incluídos R$ 2,5 bilhões de emendas impositivas. Portanto, está confirmado: a insuficiência orçamentária para financiar apenas as despesas com as Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) em 2015 chegará a cerca de R$ 5,9 bilhões, não sendo possível manter, sequer, o padrão de gastos de 2014. O reflexo disto está naquilo que os secretários estaduais e municipais de saúde já vêm anunciando há meses: o orçamento deste ano não tem dinheiro para pagar tudo e muita coisa vai ficar para ser paga nos primeiros meses de 2016, com orçamento daquele exercício e cujos valores inseridos no Projeto de Lei Anual são cerca de R$ 16,6 bilhões inferior aos do ano 2014.

A prática equivocada adotada pelo Ministério da Saúde para a remuneração dos procedimentos médicos ambulatoriais e hospitalares ao longo da última década, aliada a outros fatores, entre eles a gestão, tem provocado uma progressiva descapitalização (empobrecimento) da maior parte do segmento hospitalar filantrópico, responsável por cerca de 50% de todos os serviços prestados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Anualmente, aumenta a buscadesse segmento por financiamento de capital de giro, para manter o nível dos atendimentos. Esse endividamento ocorre, na sua maioria, junto a bancos comerciais com taxas de juros insuportáveis para a atividade que os hospitais exercem. Considerando apenas a operação de crédito Caixa Hospitais, em 2008, as instituições filantrópicas tomaram R$ 390,6 milhões para capital de giro, contra R$ 834,5 milhões em 2009 (+113,6%). Atualmente, informa a Caixa Econômica Federal que essa linha de crédito já financia perto de R$ 6 bilhões a esses hospitais, na condição de consignados dos recebíveis do SUS.

Em 2004, o segmento hospitalar filantrópico contabilizou faturamento anual com serviços prestados ao SUS na ordem de R$ 4,71 bilhões, e registrou um custo de R$ 6,29 bilhões na prestação desses serviços, portanto, perdas de R$ 1,58 bilhão. Essa autêntica hemorragia continuou crescendo ano a ano até atingir, em 2014, as seguintes marcas: R$ 24,7 bilhões no custo dos serviços prestados ao SUS contra uma receita (efetivamente recebida) de R$ 14,9 bilhões, atingindo um déficit total de R$ 9,8 bilhões. Como não há receita mágica para “criar dinheiro”, esse déficit teve que ser financiado com empréstimos bancários.

Estamos vivenciando uma situação inédita em que os hospitais sem fins lucrativos (filantrópicos) vêm sistematicamente financiando parte do Sistema Único de Saúde (SUS), o que é inaceitável, dada a obrigação constitucional do Estado Brasileiro em fazê-lo na sua integralidade. Aliás, não é permitido ao Estado causar prejuízo a outrem.

Com a persistência dessa imperfeição e distorção do Sistema Público de Saúde, ao longo desta década, a situação das santas casas e hospitais sem fins lucrativos que prestam serviços ao SUS, fechou 2014 contabilizando os seguintes números.

CRISE – CAUSA E EFEITODA DÍVIDA

Espécie de Dívida

Valor (R$)

%

Sistema Financeiro

12.090.873.000,00

56,1

Fornecedores

3.636.219.000,00

16,9

Impostos e Contribuições não recolhidas

2.595.848.000,00

12,0

Passivos Trabalhistas

1.476.823.000,00

6,8

Salários atrasados e honorários médicos

1.767.854.000,00

8,2

Total

21.567.617.000,00

100,0

A dívida de 2005 era de R$ 1,8 bilhão, em 2009 R$ 5,9 bilhões, em 2011 R$ 11,2 bilhões

Fonte: Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas – CMB e Federações Estaduais. (Dados estimados na posição de 31/5/2015)

Indiscutivelmente, há um “estado de crise” instalado na maior parte desses hospitais, recomendando um criterioso estudo técnico,por parte dos órgãos governamentais, sobre a sustentabilidade das santas casas e hospitais sem fins lucrativos – filantrópicos ou não – enquanto parceiros preferenciais na prestação de serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS) e o papel que nele representam. Há sérias ameaças sobre a sobrevivência dessas instituições a curto e médio prazos.

Informações prospectadas junto às Federações Estaduais que compõem a CMB (16 em todo o país)e diretamente junto às santas casas e hospitais sem fins lucrativos, ao final do primeiro semestre do ano em curso, apontam para um cenário preocupante: dos 480 mil postos de trabalho disponibilizados pelo segmento, cerca de 8,3% deles serão fechados até o final do ano, gerando nada menos do que 39.840 demissões. Dos quase 2.100 estabelecimentos hospitalares existentes, 10,4% (218) estarão encerrando suas atividades ou sendo assumidos pelas prefeituras locais, a maioria em municípios de até 30 mil habitantes e onde se constituem no único recurso de saúde. Serão diretamente atingidos perto de 6,5 milhões de habitantes. Em termos de leitos, estima-se 11.000 leitos fechados, além de outros 8.300 desativados, na tentativa de se diminuir o prejuízo anual. Com essas medidas o acesso da população brasileira aos serviços ofertados pelo SUS ficará muito comprometido e com tendências de se agravar, caso não se adotem medidas saneadoras a curtíssimo prazo.

Afinal, segundo dados do Ministério da Saúde, 63% de todas as internações de alta complexidade no SUS são realizadas por hospitais filantrópicos, sendo: 59% dos transplantes; 68% em procedimentos de quimioterapia realizados em regime de internação; 66% das internações em cardiologia e 69% para cirurgias oncológicas. Inimaginável, portanto, a substituição desse papel por hospitais públicos estatais. Se hoje o financiamento federal não consegue sequer responder pelo custeio da prestação desses serviços, de onde tirará recursos para construir uma rede assistencial capaz de suprir a redução decorrente do fechamento de santas casas e hospitais sem fins lucrativos ou mesmo da redução na oferta de leitos?

Uma nova estrutura de pensamento e ações deverão servir de base para um novo ciclo no relacionamento dos atores envolvidos no processo – gestores do SUS e de hospitais filantrópicos –, percorrendo um caminho de parcerias semelhante ao até aqui praticado, mas com mais entendimento e compreensão das dificuldades mútuas. Enfim, buscar um caminhar sem crise para a reestruturação do relacionamento entre as partes, visando unicamente o bemestar da população brasileira.

Importante reconhecer que, para se obter sucesso na negociação de um novo marco no relacionamento entre Ministério da Saúde, secretários estaduais e municipais de Saúde (gestores do SUS) e os dirigentes das instituições conveniadas, muitas concessões terão de ocorrer entre as partes. Mesmo assim, não será fácil uma negociação, sendo vital para o sucesso um habilidoso processo de condução.

Texto: José Luiz Spigolon, diretor-geral da CMB