A criação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) em 2003, pela Lei 10.742, pegou o setor de Saúde de surpresa, mas, apesar do susto, tudo continuou como estava, até que a resolução nº 2, publicada no dia 16 de abril de 2018, voltou a tirar o sono dos envolvidos, principalmente dos hospitais. Isso porque o objetivo da resolução é disciplinar o processo administrativo para apuração de infrações e prever aplicação de penalidades para diversas condutas qualificadas como infrações, como a proibição aos hospitais de ofertarem e cobrarem, do paciente ou dos planos de saúde, medicamentos com valor superior ao que foi adquirido.

Segundo Thalita Daiane Candido, assessora jurídica da Federação das Santas Casas de Misericórdia e Hospitais Beneficentes do Estado do Paraná (Femipa), a Câmara tem competência para decidir sobre a aplicação de penalidades relativas ao mercado de medicamentos, sem prejuízo das competências dos demais órgãos, e tem a possibilidade de investigar e instaurar processos administrativos para isso. Além disso, ela ressalta que o texto “não deixa dúvidas de que essas normas serão aplicadas a hospitais, clínicas e estabelecimentos de Saúde”. “Sabemos que os hospitais não apenas ofertam medicamentos, mas que prestam serviços de seleção, armazenamento e controle de qualidade, por exemplo, que envolvem custos, então exigem remuneração. A despeito dessa realidade, a CMED agora exige apenas o reembolso e ainda prevê sanções para o descumprimento dessa exigência, como multa e determinação para correção da irregularidade, que podem ser aplicadas em caráter cumulativo. O cálculo da multa é complexo e os valores podem prejudicar significativamente as finanças dos hospitais”, destaca.

Como a resolução trará déficit financeiro às instituições de Saúde e sabendo da dificuldade de negociação com as operadoras, diversas entidades representativas já ingressaram com ações judiciais buscando a suspensão dos efeitos da resolução. Por enquanto, os resultados são positivos. No Distrito Federal, em São Paulo e no Paraná, por exemplo, as liminares foram deferidas, o que significa que, por enquanto, os hospitais e clínicas dessas regiões, desde que afiliados ou associados às entidades de representação, não poderão ser penalizados. Paralelamente, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) criou uma Câmara Técnica para revisão e aprimoramento da regulação. Segundo Thalita, a agência está fomentando a discussão com as operadoras para que os hospitais não sejam financeiramente prejudicados, mas ela reforça que os prestadores devem participar dessa discussão para ajudar a intervir nesse processo.

“E as ações judiciais já possuem reflexos políticos, já que de acordo com a Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB), existe grande expectativa de que a CMED emita uma nova norma alterando o início da vigência da Resolução n° 02/2018 para 2019. Apesar de notícias positivas, o cenário é instável. Daí a necessidade de que os hospitais estudem outros mecanismos e comecem a negociar com as operadoras outra forma de remuneração, para que não tenham que amargar esse déficit”, aponta.

Hospitais precisam conhecer seus números

Na opinião de Daniela Weber, representante comercial da Avatar e instrutora de cursos sobre o tema, os hospitais não acreditavam que algo assim pudesse bater à porta e, por isso, não se prepararam para ter dados sobre a sua realidade. “Trabalho na área da Saúde há 22 anos. Há pelo menos 10, escuto falar sobre essa mudança. Acredito que os hospitais de certa forma se acomodaram, não acreditando que isso fosse acontecer”, diz.

Por outro lado, as operadoras, que também não conheciam os números e não queriam discutir o assunto, se reinventaram e começaram a ter um volume de informação muito grande, investindo em softwares de gestão e conseguindo, assim, ter uma informação muito mais rica e precisa do que os hospitais.

“E chegou a hora: elas têm o cheque, a caneta e a informação, então podem ditar as regras. Sabemos que não podemos generalizar, que muitos hospitais têm informações confiáveis, mas a grande maioria não tem a precisão necessária para a tomada de decisão. Ou os hospitais se organizam para fazer essa mudança de uma forma equilibrada, ou o sistema não vai se sustentar”, declara.

Para Daniela, a Saúde vem mudando, e a grande discussão, hoje, é a mudança no modelo, já que o atual não é sustentável. “É um modelo que não é ganha-ganha, pois para alguém ganhar, o outro precisa perder. Isso acaba gerando um custo enorme na Saúde e um desperdício muito grande”, salienta. Agora, com a resolução da CMED, ela garante que é o momento de se pensar em novos modelos de remuneração, pois como o hospital não poderá mais ter margem sobre o material e o medicamento, será necessário fazer transposição de margem. “Será preciso transferir o ganho que se tinha para algum lugar, porque se não fizer, não tem hospital que sobreviva”, avalia.

Como existem diversos modelos de remuneração, a representante sugere que a negociação com a operadora chegue a um denominador comum de qual modelo será usado para cada tipo de serviço, como pacote, procedimento gerenciado, entre outros.

“Em um procedimento cirúrgico, por exemplo, não necessariamente será preciso fazer transposição de margem; poderia fazer procedimento gerenciado, ou pacote. Mas, para isso, é preciso ter informações da instituição, conhecer bem os números, para, então, fazer a negociação. Se não, a operadora poderá chegar e dizer que vai pagar determinado valor para o procedimento X e o hospital não vai saber se está bom, se está ruim, se é suficiente. Conhecer os números é fundamental”, afirma.

Na opinião de Daniela, a negociação pode ser boa para as duas partes, mas, para se chegar a um modelo em que todos ganham, ela acredita que serão necessárias diversas rodadas de discussão: a operadora precisará entender os números do hospital, e o hospital vai ter que entender os números da operadora.

Ela diz, ainda, que sempre vai haver zona de conflito, porque as operadoras e os hospitais ainda não conseguiram entender que precisam se juntar, que não são concorrentes e que tudo deve ser em prol do beneficiário. Aliás, ela comenta que o beneficiário é justamente o único que fica de fora de tudo isso, mas, no fim das contas, a sinistralidade aumenta e o custo acaba sendo repassado a ele.

É por isso que a representante afirma que é fundamental ter um trabalho para mudar esse cenário e chegar ao modelo ganha-ganha. O primeiro passo, então, é que o hospital passe a conhecer bem os seus números e saber o que faz. A partir daí, precisa ter o corpo clínico junto dele.

“É o médico quem tem a caneta na mão e diz o que se usa. É preciso conscientizar o corpo clínico e a equipe do hospital como um todo sobre a nova realidade e como praticar isso, até para reduzir desperdício e custos desnecessários”, garante.

Mas Daniela Weber vai além e afirma que mudar somente o modelo de remuneração não resolve. É preciso mudar também o modelo de assistência.

“A técnica de enfermagem precisa entender que cada vez que ela troca um par de luvas, isso gera um custo. Não que ela não tenha que trocar, mas ela tem que trocar quando é necessário. O médico precisa entender que se ele consegue resolver várias coisas com um exame de sangue, não necessariamente precisa pedir tomografia e ressonância. Vai pedir, claro, quando houver necessidade. Temos que racionalizar os recursos. Hoje, o próprio paciente chega no consultório dizendo quais exames quer. Ele mesmo não conseguiu entender que, mais hora, menos hora, isso vai bater no bolso dele. Por isso, precisamos mudar o modelo assistencial, o modelo de remuneração e a cultura. Os próprios beneficiários devem entender que o custo tem que ser racionalizado. O desafio maior não está no modelo de remuneração, nem na sistemática toda; está na cultura das pessoas, tanto na cultura do beneficiário, quanto na cultura da própria equipe assistencial. E essa conta toda fecha se os hospitais se organizarem, não tenho dúvida disso”, completa.

Fonte: Jornal Voz Saúde