O Brasil, a sexta economia mundial, tem o difícil desafio de construir um sistema de saúde
compatível com essa posição, especialmente no que diz respeito a qualidade e eficiência. Hoje, o setor é um dos campeões de rejeição pelos brasileiros. De acordo com pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI)/Ibope, de janeiro deste ano, 61% da população consideram o sistema ruim ou péssimo. Entre os que disseram não perceber avanços no setor nos últimos três anos, o número é ainda mais alto: 85%. Opiniões que vão ao encontro dos resultados apontados pelo Índice de Desempenho do SUS (IDSUS), novo indicador do governo federal para avaliação do Sistema Único de Saúde (SUS). Com notas de zero a dez, apenas 6,2% dos 5.563 municípios apresentaram média sete, com serviços considerados bons. Ao instituir uma forma de aferir a qualidade e o alcance dos benefícios prestados, o governo dá o primeiro passo para tentar esclarecer a grande questão que cerca o assunto: afinal, o Brasil investe pouco em saúde, gere mal os recursos aplicados no setor ou padece de ambos os males?

A resposta não é tão simples quando se trata de levar saúde universal, integral e com equidade a 190 milhões de pessoas, das quais, conforme o Ministério da Saúde, 145 milhões dependem exclusivamente do sistema público, ou mesmo quando se examina um cenário contraditório, em que velhas carências de serviços básicos convivem com programas e avanços que são referências internacionais. Mas, se há discordâncias e nuances no debate entre insuficiência e ineficiência, parece não faltar aos especialistas consenso em torno da tese de que financiamento e gestão fazem parte da mesma receita para combater as mazelas da saúde nacional.

Fatia do PIB
“Em termos de saúde, o Brasil gasta mais do que muitos países que conseguem resultados melhores, o que significa dizer que poderíamos melhorar nosso desempenho com o nível de gasto atual”, afirma Bernard Couttolenc, economista da Saúde e diretor-presidente do Instituto Performa. Apesar dos cortes efetuados, o Ministério da Saúde é o que receberá a maior destinação do orçamento federal em 2012: R$ 72,1 bilhões. Os aportes financeiros vêm crescendo desde 2000, ano em que a dotação orçamentária foi de R$ 22,7 bilhões. No total, somando-se gastos públicos e privados, o Brasil investe atualmente em saúde cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB). Porém, diferentemente da maioria dos países desenvolvidos, a participação do Estado ainda é baixa, inferior à do setor privado.

A última edição da Conta-Satélite de Saúde do Brasil, recorte das Contas Nacionais divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) neste ano, mostra que em 2009 as famílias gastaram 29,5% mais com bens e serviços de saúde do que o setor público — R$ 835,65 per capita, contra R$ 645,27. Enquanto a administração pública respondeu por 3,8% do PIB, equivalentes a R$ 123,5 bilhões, as famílias contribuíram com 4,8%, ou R$ 157 bilhões. “Na prática, essa maior participação do setor privado na saúde no Brasil vem de muito tempo”, analisa Ricardo Moraes, gerente de Contas Nacionais do IBGE. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) classificam o Brasil na 72ª posição entre 193 países analisados quanto às despesas per capita na área, atrás de Argentina, Uruguai e Chile, vizinhos cujas economias são bem menores. Noruega e Mônaco, países que puxam a fila, investem 20 vezes mais do que o Brasil, cujo desempenho, de acordo com a OMS, é 40% inferior à média internacional.

Moraes destaca que, apesar disso, em uma média comparativa ano a ano (o levantamento teve início em 2000), os aportes por parte dos governos em saúde têm crescido de forma mais significativa do que os das famílias. Segundo Gabriel Leal de Barros, pesquisador da área de Economia Aplicada do IBRE/FGV, isso se deve não apenas a maior vontade política, mas também a maior adesão às regras de investimento determinadas pela Constituição Federal de 1988. “Nos últimos anos, tivemos algumas mudanças legais de ajuste à Constituição que levaram o poder público a ampliar os gastos com saúde”, observa. Ele também destaca como positivos os níveis de execução orçamentária do Ministério da Saúde, que vêm se mantendo na casa dos 80% desde 2007 — ano passado, a marca foi de 86,7%. “Quando falamos em aumentos de dotação, é importante frisar que não adianta aumentar e depois contingenciar. Na Saúde, diferentemente de outros ministérios, o contingenciamento é muito baixo, ainda que a maior parte acabe atingindo os investimentos”, diz.

Ligia Bahia, professora do Instituto de Saúde Coletiva e Coordenadora do Laboratório de Economia Política da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que para o Brasil ter de fato um sistema universal de saúde, é preciso responder a dois desafios: aumentar os recursos e inverter o atual padrão privado-público na proporção dos gastos. “Não se trata apenas de aportar mais dinheiro, e sim de suprimir os suportes fiscais públicos que estão por trás dos gastos privados. As tensões quanto à priorização da saúde na agenda governamental vão continuar. Em 2012, haverá eleições para prefeitos e vereadores e o tema saúde explodirá nas campanhas”, enfatiza. “Todos os que atuam na área têm a clareza de que o financiamento ao setor, em comparação com os países da América do Sul ou com os que possuem sistemas universais no mundo, é insuficiente”, reconhece Fausto Pereira dos Santos, assessor especial do gabinete do ministro da Saúde, Alexandre Padilha.

Tudo igual
As apostas para o fim do impasse do financiamento estavam concentradas na aprovação da Emenda 29, que definiria valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Distrito Federal, estados e municípios. Porém, após 11 anos em discussão no Congresso Nacional, nada mudou. Transformado em Lei Complementar (141/2012) em janeiro último, o texto sancionado pela presidente Dilma Rousseff não traz nenhuma alteração substancial no que diz respeito à participação do investimento público. De acordo com a lei, estados e Distrito Federal deverão destinar 12% das receitas ao setor; municípios, 15%; e a União, o mesmo valor empenhado no ano anterior, acrescido de, no mínimo, a variação nominal do PIB de dois anos anteriores.

O projeto defendido por políticos, gestores, médicos, enfermeiros e demais agentes vinculados ao setor previa que a União, ente que mais arrecada, contribuísse com o montante de 10%. No entanto, a proposta foi vetada sob a justificativa de que o PIB é revisado anualmente, e alterações constantes nos valores a serem destinados à saúde poderiam gerar instabilidade nas gestões fiscal e orçamentária. “Em nossa avaliação, o que foi aprovado ficou bastante aquém das necessidades do Brasil”, reclama Aloísio Tibiriçá Miranda, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Na análise dos especialistas, faltou visão de longo prazo no julgamento da matéria. “Passamos esse tempo todo com a discussão atravessada no Congresso, para, na última hora, tudo virar discussão financeira de curto prazo, de quantos bilhões a mais ou a menos podemos pagar hoje. Ninguém se pergunta como estará esse modelo daqui a cinco, dez ou 20 anos. Quais serão as fontes alternativas se esses 12%, 15% e a variação em cima do PIB não forem suficientes?”, questiona Alexandre Marinho, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Tibiriçá Miranda lembra que o próprio ministro da Saúde havia destacado, durante a votação da Emenda na Câmara dos Deputados, que o Brasil precisaria de mais R$ 45 bilhões para serem investidos no setor. “O projeto aprovado no Senado traria uma quantia menor, de R$ 35 bilhões, escalonados em três anos”, diz ao mencionar o veto à reserva de 10%.

Na avaliação do governo federal, o desfecho da matéria não suprime a necessidade de se retomar o debate sobre a questão. “Do ponto de vista do financiamento público, o problema na saúde é muito grave para ser resolvido pela regulamentação da emenda”, declara Fausto Pereira dos Santos, assessor especial do ministério. No mesmo sentido, Barros, do IBRE/FGV, considera a insistência na destinação de 10% das receitas da União para a Saúde, como defendem algumas entidades, uma demanda inconsistente e que embute grande risco fiscal. “O governo não teria como conciliar esse percentual com o custeio adequado de áreas como Educação, Previdência e Assistência Social”, alerta.

Da forma como foi sancionada, a expectativa é de que a lei enseje somente melhorias qualitativas. “Embora não entre em detalhes, a Emenda 29 tangencia o aspecto da gestão quando trata da adequação de despesas”, observa o pesquisador, referindo-se ao fato de que o normativo também determina o que pode ou não constar da rubrica de gastos com saúde. A médica Ligia Bahia concorda, e acrescenta que a regulamentação desse ponto específico pode contribuir para ampliar a transparência e o controle dos orçamentos na área. “Esse detalhe pode parecer insignificante, mas não é. Houve um uso abusivo por parte de governadores e prefeitos ao incluírem gastos de outras áreas na conta da saúde”, diz.

Mas há controvérsias. “Afirmar que isso acaba com os desvios e aumenta o dinheiro para a saúde é mentira. Os municípios tinham que destinar 15% ao setor, mas, na média nacional, esse desencaixe já está em 22%. Portanto, não existe nada de novo. Nesses 11 anos, os municípios já colocaram R$ 103 bilhões a mais que os 15% obrigatórios”, contesta Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Ralos abertos
A polêmica expõe as principais feridas do sistema de saúde brasileiro: a alocação e a gestão das verbas destinadas ao setor. “Nosso sistema é bastante perdulário e ineficiente. Apesar de algumas melhorias significativas verificadas no SUS, via programas como Saúde da Família e Atenção Básica, ainda existem distorções importantes na alocação de recursos, gestão e financiamento que, se corrigidas, reduziriam muito o impacto do gasto adicional. Se os recursos fossem investidos para resolver gargalos e falhas do sistema, aí sim, teriam um impacto positivo”, avalia Bernard Couttolenc, do Instituto Performa.

Barros, do IBRE/FGV, segue raciocínio semelhante. Em sua opinião, a prova de que o aspecto da gestão transcende o financeiro está nos relatórios divulgados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e nas fiscalizações da Controladoria Geral da União (CGU), as quais refletem a fragilidade do poder público em efetuar uma administração eficiente dos recursos. “A capacidade de monitoramento e controle do Ministério da Saúde é bastante limitada, o que torna difícil garantir a capilaridade dos serviços públicos de saúde. Existem coisas básicas de gestão, como o acompanhamento do realizado ante o orçado, que não são levadas em consideração”, observa.

Alexandre Marinho, do Ipea, defende investimentos diretamente em gestão. “Há programas que são prioritários? Sim, mas é importante contratar pessoas, rever o regime de trabalho de grande parte do pessoal do SUS, enfim, investir em conhecimento específico, em mecanismos gerenciais, matemáticos e estatísticos, para orientar os órgãos na administração. São coisas que em outros países foram apropriadas pelo setor de saúde, mas que no Brasil não se fazem”, destaca. Para ele, a forma descentralizada como o SUS foi concebido, com a União formulando políticas nacionais que serão implementadas pelos demais entes federativos, em especial os municípios, dificulta os avanços em gestão, pois nem todos dispõem de recursos e pessoal qualificado para gerenciar o setor. Tibiriçá Miranda, do CFM, reforça o coro por mais investimentos específicos. “É preciso olhar desde o vínculo precário de trabalho dos profissionais de saúde, sem incentivos de carreira, à situação hospitalar. Tudo isso requer financiamento e gera desassistência. Aí, a gente pergunta: qual o projeto do Estado brasileiro?”

Um bom negócio
Um estudo do Ipea denominado “Brasil e OCDE: avaliação da eficiência em sistemas de saúde” demonstra que o país não investe muito menos no setor do que os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a ponto de justificar resultados modestos. “Fazer investimento eficiente, benfeito, em saúde no Brasil é um excelente negócio sob o ponto de vista social. Daria um retorno muito elevado para a sociedade, eventualmente até melhor do que em alguns países da OCDE”, diz Marinho, ao se referir a índices que poderiam ser melhorados, como redução de mortalidade e expectativa de vida ao nascer.

Capacidade de transformar recursos em ações, segundo o estudo, o Brasil tem. Mas, na avaliação de Marinho, os recursos ainda são insuficientes e carecem de uma melhor administração. “Sob o ponto de vista das intenções, estamos mais avançados do que diversos países desenvolvidos. Agora, entre a intenção e o gesto, as pessoas têm um indicador prático de que isso não ocorreu ao longo dos anos, que é o financiamento. Se você não coloca dinheiro, como dizer que é prioritário?”, questiona.

O fato é que, cumprir o que a Constituição determina, ou seja, oferecer saúde universal a todos os brasileiros, parece uma missão quase impossível. “É muito difícil fazer isso. Sempre vai haver um lugar com alguma falha. Mas, com gestão e adoção de alguns indicadores, dá para melhorar muito”, analisa Gabriel de Barros, do IBRE/FGV. Estudos internacionais apontam o investimento em redes de saúde organizadas por regiões e com coordenação única como forma de aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços prestados. Bernard Couttolenc, do Instituto Performa, concorda, embora considere a iniciativa incipiente no país. “O SUS tem desenvolvido ações esparsas e tímidas nesse sentido, e quase nada tem sido feito no setor privado. A ampliação e o fortalecimento dessa estratégia no deveriam ser prioritários para aprimorar o nosso sistema de saúde”, ressalta.

Ainda na visão de Couttolenc, os setores público e privado devem, o quanto antes, somar esforços para aprimorar as condições de financiamento e gestão do sistema, de modo a fazer frente aos três principais desafios futuros do setor: o rápido envelhecimento da população, que cria demandas específicas; as crescentes expectativas da sociedade com relação à qualidade, rapidez e humanização do atendimento; e a necessidade de eliminação da atual divisão entre os sistemas público (SUS) e privado, causa de duplicidades e ineficiências. “Precisamos de um desenho mais claro, com definição de competências e papéis, bem como mecanismos de coordenação e articulação”, propõe Couttolenc.

FONTE: Kalinka Iaquinto – Revista Conjuntura Econômica – Março de 2012